terça-feira, 29 de julho de 2014

Entranhas e superfícies

Escolher é abrir mão de todo o resto – e isso dói.
A Ana, que já viveu mais de sete décadas, disse que, quando começou a conhecer o mundo, as opções eram poucas – quase toda sua vida já havia sido determinada. Sabia que o ensino fundamental serial o ponto final da sua vida escolar,  seu futuro noivo já a esperava na porta e a casa que habitaria após o casamento já estava construída mesmo antes do seu nascimento.
A Ana não tinha dúvidas. Ela seguiu o caminho traçado.
O tempo passou e a terra batida deu origem ao asfalto. O percurso tornou-se rápido, ágil e cheio de bifurcações.  O campo florido – e nem por isso absolutamente agradável, que a Ana percorreu calmamente originou gigantes de cimento. Hoje é preciso correr para não ser massacrado.
Eram duas da manhã e seus olhos teimavam em arder abertos. A chuva caía fina lá fora e o desespero espessava aqui dentro. Tocava “The Velvet Underground” nos fones de ouvido e ela só conseguia pensar nas oportunidades que a vida dá – e, consequentemente, naquelas que lhe são roubadas.
Foram tantos relacionamentos quebrados, tantos caminhos iniciados e outras tantas portas de saída escancaradas. Seria covardia? Teria ela problemas com coisas inacabadas?
“Run, run, run” era a letra da música, Velvet já podia prever sua ânsia de chegar a algum lugar ou, na pressa, a lugar nenhum. Pause. Era preciso parar, respirar em silêncio – seria todo hiato perda de tempo?
A vida moderna é cheia de possibilidades, e, na maioria das vezes, dizemos isso com alegria. Podemos seguir para onde quisermos, tomar um trem e viajar o mundo. O mundo, nos dias de hoje, deixou a exuberância de lado e tornou-se bolinha de isopor pintada de azul – é fácil percorrê-lo por inteiro da tela de um computador.
São tantos lugares, tantas pessoas, tantos olhares e tantas bocas.
As novidades são tantas que escorrem entre os dedos – fluída. Queremos todas elas.
O celular quebrou? Compramos outro. O namoro esfriou? Caçamos outro. Consertar tornou-se verbo em desuso.  
A Ana disse que fica assustada com tanto caos. Na época dela, pessoas custavam a jogar fora cacarecos e sentimentos e, hoje, ela diz que, diante dos seus olhos, a montanha de lixo quase chega ao céu. Olha para o seu futuro próximo, situado no azul do infinito, ela confessa ao meu ouvido: “Tenho medo que meus netos não saibam o significado do valor das coisas.”
Eu, que não conheço seus netos, imaginei todos os netos do mundo. Aqueles que não agarram as coisas com força, mas as tocam superficialmente para logo deixar as mãos livres – querem sentir os tantos “tantos” que a vida oferece.
Não escolhem, querem tudo ao mesmo tempo. Escolher é abrir mão de todo o resto – e isso dói. Esquecem que a dor de deixar uma oportunidade partir cura-se logo com a alegria de colocar a outra, então, escolhida em redoma de vidro - não mais praticando o toque finito, mas entranhando em tudo aquilo que deixamos ficar.

Mais vale conhecer as entranhas da própria vida que a superfície de todos os oceanos. 

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