domingo, 8 de maio de 2016

O Dia das Mães que ninguém vê



Neuza* é moradora da Vila Brandina, bairro da região leste de Campinas. É merendeira de escola estadual há mais de uma década e não se imagina em outro cargo, já que não tem tempo para estudar para os concursos públicos da próxima estação. Os sete filhos consumiram sua vida. Todos do mesmo pai, ainda que o pai não se lembre da cara de todos. Partira antes do primeiro choro do último filho. Neuza peitou o destino e, de tanto encher pratos na escola que lhe garantia salário, encheu também as sete cumbucas que se dispunham em uma mesa de quatro lugares. Fez-se mãe e pai em um só corpo.
A filha mais velha engravidou logo. Foi mãe aos 16 e fugiu aos 17. Levou consigo o bebê em fraldas. Talvez tenha realizado o sonho de brincar com a boneca que nunca teve. Culparam Neuza por nunca ter lhe alertado sobre os método contraceptivos. 

Restaram-lhe seis. 

Na minha calçada, tem espaço para a flor do outro morar


Segunda-feira é dia de tirar o lixo. Colocar para fora todas as embalagens vazias que empacotaram as doses de aconchego do final de semana. Meu prédio não tem elevador, o que deixou de ser um incômodo e fez das escadas as domadoras da minha ânsia de chegar. Desci carregada de sacos pretos. Seis lances de escadas. Na metade, comecei a escutar a discussão. A vizinha do primeiro andar batia boca com a moradora do segundo. Desacelerei os passos. 
- Isso é um absurdo! Não quero sujeira sua em minha varanda! 

O dente do siso

Eu tenho os quatro dentes do siso. Todos já apontaram em seus respectivos lugares na gengiva. Estão intactos. Um deles, o do lado esquerdo, inflamou. Nos primeiros momentos, a dor, insuportável que é, fez nascer a ideia de extração. Eu teria que, finalmente, enfrentar o dentista e tirar dali o incômodo.
Sorrindo e caminhando em direção à dor, o medo a tirou para dançar. Evitei o telefone e não agendei um horário. Deixei o dente pulsar na boca. Senti a intensidade de sua presença a cada mastigada. A dor, de tanto rodar de mãos dadas com o medo, demonstrou cansaço. Saiu de cena. Retirou-se, cicatrizando a gengiva maltratada pelo dente pontiagudo. O medo a deixou tonta e criou em mim a ilusão de que aquela sensação dolorida nunca existira. Fiz as pazes com o siso e decidi que o deixaria enraizado, vizinho dos molares do lado esquerdo. 
Hoje, meses após a reconciliação, a dor acordou. Senti latejar no começo da manhã. Pensei que fosse coisa passageira. Ignorei. Perto do almoço, no entanto, a gengiva inchou. Não comi. Na angústia, pensei em pegar o telefone e tomar uma atitude. Hesitei. Esperei, mais uma vez, o medo dar as caras, impedindo-me de enfrentar, de uma vez por todas, a extração.
Enquanto convivo com a dor, que, de tempos em tempos, vem e vai, penso: quantos sisos deixamos nos incomodar e tornar os dias doloridos diante da ilusória sensação de alívio causada pelo medo?
O medo, esse senhor de ar autoritário, é mestre na arte da enganação. Camufla os desconfortos, fazendo-nos acreditar que o hiato entre uma inflamação e outra é mais satisfatório do que a paz permanente. Amarra-nos em nossas inseguranças e estorva, alimentando, no peito e na mente, a ideia de que não há nada de errado em permitir que a dor more em nós.
Chega o dia em que é preciso bater de frente. Fazer a dança de medo e de dor acontecer para fora dos portões. Do lado de fora, a frustração não é mais trilha sonora. Eles que rodopiem à vontade, enquanto desocupo espaços para a coragem e ligo para o dentista.
A extração é a despedida da dor. O último suspiro. Um buraco na gengiva feito para o alívio morar.


É preciso expulsar o medo para se desfazer da dor.