Quando decidi sair de casa e enfrentar a odisseia de morar sozinha, não imaginei que, pelo percurso, seria curada de uma cegueira que acomete a muitos olhos. Com 17 anos a gente carrega bagagem pequena. Decidi alugar um apartamento de um só. Lugar unicamente meu. Lembro-me perfeitamente do primeiro instante que me vi ali, parada, frente à porta que meu pai acabara de fechar. O meu maior medo era não saber qual ônibus pegar para ir até a faculdade no primeiro dia de aula. Dormi de olhos abertos, repassando, mentalmente, o mapa ribeirão-pretano que havia recebido no ato da matrícula. Os ponteiros ainda precisavam trabalhar por duas horas inteiras, mas eu já estava de mochila nas costas. Meu prédio não tinha elevador. Desci os quatro lances de escada a passos largos. Receosa. Na portaria, uma máquina de refrigerantes, daquelas que ainda aceitam as já inexistentes moedas de um centavo.
Durante a mudança, a máquina de refrigerantes foi o que chamou minha atenção. Brilhava à noite, ofuscando o vidro do lado oposto. Vidro este que escondia o que aquela portaria tinha de mais precioso: o ser humano responsável por minha segurança. Olhei em direção àquele insulfilm sem rosto e meus olhos gritaram por socorro. A janela da guarita abriu e, junto dela, abriu-se um sorriso. O porteiro logo fez questão de perguntar se eu precisava de alguma informação. Foi o Marcos quem me ensinou a tomar o ônibus. Ele também me contou qual era o melhor e mais barato lanche da cidade e alertou sobre os bairros perigosos. Conferiu se minha porta estava fechada das primeiras vezes que deixei o apartamento para passar o final de semana em Catanduva e me deu broncas pelo vazamento da pia cozinha, que eu nunca tive tempo suficiente para arrumar.
A última lembrança de Ribeirão é feito foto. Dentro do carro carregado de mudanças e memórias, olho para trás e vejo aquele que foi meu lar. O Marcos estava lá. E foi o último a me dar tchau. Ciclo completo.