terça-feira, 23 de agosto de 2016

Iracema e a literatura machista




Leitura é coisa cíclica. Num dia, gosta, noutro, desgosta. Depende de quem somos naquele instante. Li, pela primeira vez, Iracema, de José de Alencar, há oito anos. Na época, era aluna do ensino médio e meu interesse era ser aprovada no vestibular. Confesso que não encontrei o tal encantamento que Machado de Assis enxergou na obra, quando a classificou como a mais perfeita prosa-poética que já lera. Enxerguei naquelas páginas amareladas uma relação de amor entre Iracema e Martim, a idealização da índia brasileira, a exaltação da cor local e mais outras tantas características listadas no material didático. Fiz leitura mecânica. Compreendi apenas o que o vestibular gostaria que eu compreendesse.

Hoje, o tema da aula de Literatura foi a análise de Iracema, que ainda é leitura obrigatória de um dos vestibulares mais concorridos do país. Eu estava do lado de cá. Giz nas mãos. Horrorizada em ainda existir leitura obrigatória.
Sabendo que o tema estava no cronograma, decidi refazer a leitura da obra. Dessa vez, não como leitura obrigatória. Apenas leitura.

É incrível como nossa compreensão das manifestações culturais mostra o quanto somos transformados com o caminhar dos ponteiros do relógio. O enredo é o mesmo, fui eu quem mudou. Iracema, para mim, é a visão machista, cristã e branca de todo um contexto de nação recém-libertada de sua metrópole.
Lembre-se que, enquanto Martim ia para as batalhas, Iracema padecia em solidão, cumprindo sua sina de mulher, que, por imposição cristã, quanto mais sofre, melhor fica no quadro. No final, Martim é visto como herói português e Iracema, enterrada.

Além disso, não podemos ignorar o fato de que José de Alencar era proprietário de terras, escravocrata e político conservador. A vida do autor, afinal, também tem sua importância para a análise.
Não me apresentaram essa análise no ensino médio. Sinto que ainda não a apresentam. Restringem-se aos moldes de uma avaliação e deixam de lado a importância histórico-cultural da literatura. Decidi, então, que, na minha aula, a análise seria diferente. Como professora, sou totalmente adversa aos resumos disponíveis pelos quatro cantos da internet, entretanto, fiz um apelo: leiam os resumos obrigatórios e, quando a obrigatoriedade passar, leiam as obras na íntegra. Com olhos curiosos, não mais obrigados.
A leitura obrigatória é a maneira mais eficiente de fazer com que as pessoas odeiem ler. Agora, pergunto: quando é que os vestibulares, sistema falho e inevitável de avaliação, vão parar de cobrar leitura mecânica, adotando como prática questões que estimulem nosso senso crítico?
Está na hora de a FUVEST, assim como provas de outras universidades, aproveitar melhor sua lista de livros. Deixá-la menos obrigatória e mais coerente com nossa realidade.
Literatura machista: é preciso discutir.

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