terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Tranças, penteados e a beleza dos aprenderes

Conheci a Jheniffer em uma das primeiras visitas ao Jardim Nicéia, um bairro da periferia de Bauru, durante o desenvolvimento do projeto de incentivo à leitura infantil (https://goo.gl/hUxTTw).
Nas primeiras rodas de leitura, ela mostrou-se uma criança de poucas palavras. Participou da atividade com a timidez típica dos desinteressados. Folheou os livros de forma apática. Quando questionei se ela já aprendera a ler, não fez que sim, nem que não. Desviou o olhar. Nessas idas e vindas ao bairro, ganhei sua amizade, que, quando acontece entre pessoas com grande diferença de idade, torna-se sinônimo de confiança.
Na última visita, era Dia das Crianças. Todos estavam agitados diante da sacola de doces e de toda a programação especial. Não deu para fazer a roda, ler em conjunto e contar histórias, então, sentei-me no banco e fiquei observando aquela alegria que teima em brotar dos sorrisos infantis. A mesma que, quando crescemos, perdemos o jeito e esquecemos como é que se faz. Para adultos, sorrir é, na maioria das vezes, difícil demais.
Jheniffer se aproximou e pediu para que eu lesse uma história. Fizemos um trato: eu leria, mas ela teria que me ajudar.

"A professora não tem paciência comigo, tia. Vive dizendo que não vou para frente. Disse que eu tenho aquele problema de gente lenta."
"O que você gosta de fazer, Jheniffer?"
"Eu não gosto de ler, mas gosto de fazer penteados. Minha tia é uma cabeleireira famosa lá no centro de Bauru e sempre me ensina coisa nova. Depois, treino sozinha em casa."
"Então, façamos assim: eu conto uma história e você me faz um penteado, combinado?"
Li o livro de cabo a rabo e notei a ansiedade daquele pingo de gente. Ela, que sempre fora criança introvertida, demonstrou, finalmente, interesse em ser protagonista da ação. Assim que finalizei a última linha, ela começou a criar em minha cabeça. Aproveitou o punhado generoso de cabelo e disse que faria o último penteado que aprendera.
Enquanto trançava as mechas, contou uma história sobre bruxas e fadas, baseada no que ouvira anteriormente. Errou, consertou, prendeu, soltou. Amarrou o elástico na ponta e, naquele momento, terminou também a contação.
"Dá uma olhada, tia. Esse eu vi minha tia fazendo só uma vez, mas acho que consegui copiar."
"É claro que você conseguiu copiar, Jheniffer. E mais: para uma menina de sete anos, fez obra de arte."
Ela abriu o sorriso que ficara guardado sob as críticas de sua professora. Durante todo o processo, esteve feliz. Sorriu com a alma, diferente de quando ficara sentada, olhando confusa para as palavras. Naquele momento, a roda de leitura não era o seu lugar. É preciso paciência. A felicidade só dá as caras quando há paixão. Disse:
"Tia, você acha que eu consigo aprender?"
Jheniffer está no segundo ano do Ensino Fundamental. Em suas primeiras experiências escolares, frustrou-se por não se enquadrar nos padrões estipulados por sua professora. Desistiu da leitura por não se considerar apta. Mas a vida é coisa rara, cruza os caminhos da gente.
"Você não só consegue aprender, como me ensinou muito hoje, Jheniffer. Eu nunca soube contar história enquanto tranço o cabelo."
Ela imediatamente pegou mais um livro, disse que faria o mesmo esforço de quando estava aprendendo penteados com sua tia. Queria ler uma história e, quem sabe, escrever aquela que me contou durante a preparação das mechas. Eu, quando em casa, fiquei com o coração apertado. Talvez, nunca mais tenha um penteado como o de Jheniffer.
Nem todas as histórias moram em palavras, aprendi naquele dia. Algumas, em tranças e elásticos. Pobre desta professora que pensa existir gente lenta. Ela, decerto, nunca terá os cabelos trançados por Jheniffer e, por desconsiderar sua forma de expressão, também nunca ouça uma de suas fantásticas narrativas.
Jheniffer não tem problemas de aprendizagem, a professora é que não quer aprender sobre sua forma de revelar o mundo.
Os processos seletivos para as universidades públicas brasileiras são a professora de Jheniffer - recusam-se a enxergar o humano do ser, buscando quantificar saberes e desfazer tranças. Fazem-nos acreditar, a cada correção, que nossas paixões não valem pontos na nota final.
Sigo com o aprendizado que adquiri com Jheniffer: não deixe de amar o que te faz feliz por algumas dezenas de questões.

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