Era sábado de manhã.
Abriu os olhos e o dente, ainda de leite, estava ali dançando em sua gengiva. Junto ao balanço daquele que logo não faria parte do seu eu, chegou o medo de perdê-lo.
Passou dias sentindo sua presença, antes nunca percebida. Sua língua, sem querer, encontrava a peça bamba que tantas vezes fizera parte de seu sorriso e, ao encontra-la, sentia a dor - de saber que logo tal fio de raiz seria desfeito e aquele pedaço dela seria preenchido de nada.
Espaço vazio circundado de outros que não poderiam substituí-lo. A substituição, que viria com a chegada do permanente, aconteceria no tempo certo. Até lá, espaço desabitado.
Ela poderia simplesmente amarrar o famoso fio ao redor do dente, prendê-lo à porta e arrancá-lo de uma só vez. Mas preferia senti-lo em sua boca por mais um tempo, ainda que incômodo - era bom lembrar que ele estava ali quando tentava comer um dos biscoitos que sua avó preparava para o café da tarde.
Por mais que tivesse se esforçado para que dança continuasse, sem remédio um dia ela parou.
A cortina de sangue encerrou o espetáculo e, o protagonista, que estivera por um fio, naquele dia perdeu sua última ligação. Jazia ali em suas pequenas mãos molhadas de lágrimas.
Dormiu com seu companheiro de risos sob o travesseiro e, na manhã seguinte, ao passar a língua e sentir o vazio bem na frente da parte superior, chorou.
Com o tempo, foi perdendo todos os dentes de leite e, como era de esperar, acostumou-se com as perdas, ganhando confiança suficiente para saber que o permanente sempre chega, demorando, algumas vezes, mais que outras.
Com a dentição já toda substituída, pensara que o medo da ausência a deixaria em paz e, a partir de agora, nenhum vazio a surpreenderia numa manhã qualquer. Esqueceu-se de que não são só os dentes aqueles a ficarem por um fio, pessoas também são capazes de ser parte do nosso eu e, mais tarde, desligar-se como o fio que cai após uma tempestade, deixando-nos no escuro.
Era sábado de manhã.
Abriu os olhos e o coração, ainda leve, estava ali dançando em seu peito.
Ritmado. Pulsando a cada pensar.
Na noite anterior, houve tempestade. Curto-circuito. O fio soltava faíscas.
Era certo que o melhor a se fazer era livrar-se do filete de cobre que a prendia. Mas, assim como nos tempos de criança, gostava de sentir a passagem de energia, ainda que incômoda.
A tempestade acalmou e ele apareceu, já era hora do almoço. O fio, desencapado, faíscou. Era um risco mantê-lo exposto, tênue entre a junção e o explodir.
Não o arrancou de uma vez, lembrou-se de quando deixou o dente ali, titubeando entre o céu da boca e o chão - ainda que bambo, por um fio, era o que inteirava uma parte dela.
Mesmo estando ali, luzes chispando desordenadamente fazendo seus olhos queimarem, entendeu que estar por um fio não é, como dizem, caminhar para o fim. O fio, ainda que delicado, existe em sua presença. Quando dessa forma, prestes a arrebentar, o caminho mais fácil é cortar a ligação. Estilhaçar qualquer barbante que ligue uma mão a outra.
Ela escolheu o mais difícil - equilibrar-se sobre uma linha fina, fazendo-a carregar todo seu peso, cortando os pés e, ainda assim, segurando as pontas. Como o dente, que encontrava sua língua descompromissadamente, causando-lhe chateação, os pés encontravam o fio que lhe doíam.
E, também tal como o pedaço de leite que deixou de ser seu, o fio era insubstituível; caso cortado, outros ao redor não fariam o mesmo papel.
Enfrentar linha tênue é incômodo - mas não se arrependeu em nenhum momento de estar naquele fio. Dançando e trançando novas fibras para que o cordão adensasse e toda a dor causada aos seus pés fosse permuta para o caminho ameno que viria a seguir.
Estar por um fio é, além de dor, estar ali.
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