sábado, 27 de setembro de 2014

Amor é janela aberta para o sol entrar

A alma é névoa presa em vitrais e, quando ama, quer escapar por entre as frestas para misturar-se com outra que exala daquele que a recebeu de janelas abertas. 
Amor é mistura de sopros.

Numa dessas andanças, dei com um senhor que, sentado em sua cadeira, mãos sobre os joelhos, dizia estar esperando a morte chegar. Morrer, para ele, era reencontro. 
Praguejava por ter perdido as forças das pernas e, ainda assim, permanecer com a memória impecável. 
Clarice era o nome dela. 
Impossível esquecer a grafia e a entonação daquela voz ao apresentar-se pela primeira vez.
O som do nome dela entrou em seus ouvidos sem pedir licença. Instalou-se em sua mente sem que lhe fosse concedida permissão. Conhecê-la trouxe um vendaval que quase trincou seus vitrais. Forçou o cadeado. Bateu forte contra os grades de proteção.
Da segunda vez que a viu, abriu o maior sol. Céu aberto. Ele, protegido pelo blackout das grossas cortinas, permaneu no escuro - enxergava o brilho dela, mas relutou. Não a deixou entrar.
Ela, apesar das tempestades que já inundaram seus cômodos, era janela aberta. Sentia as correntes de ar em seus cabelos. Respirava todo o sopro da alma daquele que olhava pelo parapeito. 
Queria engolir cada pedaço de dentro para degustar o doce e o amargo que o outro poderia lhe causar.


Os encontros foram listados até que a voz cansada do senhor, que balançava o corpo para frente e para trás, como o pêndulo do relógio que demonstra o passar do tempo, perdesse o som e, em seu lugar, pudesse ser ouvido um soluço de lágrimas - voz do arrependimento que não sabe escolher as palavras certas para dialogar.

Conta o senhor que suas janelas permaneceram bloqueadas - por dentro e por fora. Clarice chegava com seu vestido que ultrapassava os pés e fudia-se aos ventos e batia palmas. 
Ô de casa, tem visita querendo entrar. Tem lugar pra eu morar aí dentro desse peito?
A resposta nunca vinha. 
Bateu palmas até dilatar os vasos das mãos, rios de sangue que adensaram seu fluxo por insistência. Um dia, o rio transbordou.
A última vez que sua mão direita encontrou a esquerda produzindo o maior estalo, ele continuou de olhos fechados. Adormecido. O som do despertar não o atingiu.

Ela resolveu então dispersar outras nuvens. Limpar outro céu. 
Não precisou voar longe para encontrar uma janela escancarada pronta para receber seu pouso. 
E pousou.

A vida escoou. Ele cedeu espaço para que outra Clarice, cuja entonação de voz não adentrou para além de seus tímpanos, chamasse de abrigo. Essa Clarice pedia licença, por favor, posso enraizar no pensamento?
Quem pede permissão, não enraíza e também não amedronta.
E, por segurança, foi essa Clarice cheia de boas maneiras que ele deixou sentar na pontinha da cadeira de sua mesa de jantar, prester a cair, incômodo - mas como manda a etiqueta. 

Aquela Clarice, rastro de vento que escapa pelos dedos de quem tenta refrear, permaneceu quieta naquele parapeito que encontrou ao acaso por anos - até notar que sua janela já começava a apresentar obstáculos para luz, que chegava, agora, opaca aos olhos. Instalou uma cortina de renda, fechou os vidros. 
Condensou. Ar transformado em chuva, que cai direto no balde, podendo ser contida. 
Vez ou outra, espiava pelas grades em direção àquela janela do outro lado da rua, já enferrujada por nunca ter corrido pelos trilhos.

Ambos infelizes.
Ela, por ter pousado num galho bambo.
Ele, por não ter estendido o galho para que ela pousasse.

Chá das cinco. 
Ele deu uma rasteira nos padrões e derrubou aquela Clarice sem rosto da beirada da cadeira de madeira maciça. Desfez a mesa. Estilhaçou os bibelôs contra os vitrais empoeirados, rasgou o blackout. 
O cadeado abriu por livre e espontânea vontade. Os feixes de luz começaram a penetrar seu interior, cegando-o, fazendo arder os olhos. 
Arreganhou sua janela de uma só vez, ainda que isso lhe custasse toda coragem que reuniu até lá.

Clarice, a única que realmente existia em seus pensamentos, sentiu a corrente de ar vinda do novo espaço aberto. Colocou a cabeça por entre os girassóis do parapeito e, então, enxergou o porto-seguro no qual sempre quis ancorar. 

Abandonou as penas, revestiu-se de aço. O pousar é breve, ancorar, eterno.
Saiu pela porta da frente, passos firmes, decididos. Quando chegou, janela aberta, não precisou ferir as mãos golpeando-as uma contra a outra, os olhos deles estavam bem abertos; prontos para encarar os delas estabelecendo laços. 
Ele a esperava com bromélias avermelhadas, ainda brotos - as quais só floresceram quando Clarice tinha criado raízes sob a terra do jardim. O tempo permitiu visita breve. 

Hoje, olhar perdido, entendeu que é preciso deixar entrar sem medo para viver o amor que finca no peito. 
Janela aberta é porta de entrada para aquele alguém que já mora dentro de você, mas precisa trazer o resto da mudança para ficar de vez.

Invejou Clarice pela coragem de não confirir os cadeados antes de dormir, deixando a brisa ir e vir livremente. Dizia ela que, se o tempo fechar e cair água pra inundar, que inunde - o sol chega em seguida pra secar.
Amor, definiu enlaçando os dedos como se fossem seus e dela, é janela escancarada - confiança de que a casa permanecerá intacta ainda que desprovida das grades de proteção. 

Prometeu, enfim, cuidar das marcas daquelas mãos que tanto bateram, mas que ele, sem coragem, fingiu não ouvir. Bastava estagnar o pêndulo, corpo na horizontal - seguir para além daqui, onde pudesse encontra-la com as flores que, sem tempo, não efeitaram seu olhar.






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