terça-feira, 22 de setembro de 2015

Carta pr'avó

Esse quintal já foi de terra batida com plantas espalhadas por todo canto. Costumava ter uma árvore aqui dentro, dizem até que era morada de muitos animais. No canto, perto da saída, uma comigo-ninguém-pode enorme. A vó dizia que matava só de relar a mão Lembro do dia que compramos a piscina. Só podíamos nadar se mantivéssemos em pé a promessa de não estragar nenhuma das plantas da vó Pina. Quando eu me transformava em cientista e fazia do quintal meu laboratório, lá vinha a vó Pina correndo conferir se todos os vasos estavam inteiros. 


Antes do cimento tomar conta de tudo, as roseiras circundavam o quintal. Era bonito de ver a vó ali no meio, entre os espinhos, lutando para deixá-las em pé. Mas a permeabilidade da terra findou. Com a reforma, o quintal modernizou-se. Chão de concreto, armários embutidos, prateleiras para organizar todos os produtos de limpeza que eu costumava usar em minhas experiências. As plantas da vó Pina, antes derramadas por todos os espaços, ganharam um canto definido. Tornaram-se tímidas. Pequenos vasinhos carregando dentro de si memórias em tons de marrons - cores da terra que fincava as raízes da casa. As rosas foram substituídas por orquídeas. Todas organizadas em um orquidário vertical. A vó já não podia mais colocar-se entre os espinhos, sua pele tornara-se tênuedemais. Seus pés já não apresentavam equilíbrio suficiente para caminhar por trajetos desiguais. Restava-lhe os vasos de orquídeas. 

Costumo comparar a vó às flores que já habitaram esse quintal. Outrora fora rosa selvagem, com espinhos para 
defender a todos e força para crescer livre no chão, sem adubos. Hoje, a reforma do tempo a atingiu. Tornou-se tímida. Um corpo frágil que carrega as memórias de épocas de terra batida. Transformou-se em orquídea de pétalas suaves. Uma orquídea de cores e formas singulares, que, na maior parte do tempo, esconde-se em sua folhagem. 

Dizem que, quando uma nova orquídea chega ao quintal, as outras abrem espaço para que ela exiba suas cores exuberantes. A mais antiga, após passada sua fase de floração, põe-se a descansar. A vó Pina é assim - uma orquídea que já encantou muitos olhares e hoje ensina às outras a arte de colorir os jardins da vida. Deu seu lugar de destaque às filhas, netas, bisnetas e a todos que quiserem aqui fincar raízes. 
Minha avó tem o jardim mais lindo que eu conheço. Eu, que nunca entendera a grande importância que as plantas e flores tinham em sua vida, hoje compreendo: cuidar do jardim é cuidar da alma. E a alma da minha avó é feita de orquídeas - por isso, encanta. 

Que sorte a minha ter a vó do meu lado. Aliás, sorte a minha ter vindo a esse mundo como sua neta e por crescer ao seu, aprendendo, dia após dia, a cuidar do meu próprio jardim. De tudo o que você me deu e ensinou, agradeço, acima de tudo, por me fazer enxergar que as melhores e mais bonitas coisas da vida não podem ser postas em prateleiras de lojas, porque são livres para brotar do chão. 

Sou apaixonada por você e pelas suas flores: do quintal, do olhar e do coração. 

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