terça-feira, 22 de setembro de 2015

Regras da boa convivência moderna: é proibido papear com o porteiro

Quando decidi sair de casa e enfrentar a odisseia de morar sozinha, não imaginei que, pelo percurso, seria curada de uma cegueira que acomete a muitos olhos. Com 17 anos a gente carrega bagagem pequena. Decidi alugar um apartamento de um só. Lugar unicamente meu. Lembro-me perfeitamente do primeiro instante que me vi ali, parada, frente à porta que meu pai acabara de fechar. O meu maior medo era não saber qual ônibus pegar para ir até a faculdade no primeiro dia de aula. Dormi de olhos abertos, repassando, mentalmente, o mapa ribeirão-pretano que havia recebido no ato da matrícula. Os ponteiros ainda precisavam trabalhar por duas horas inteiras, mas eu já estava de mochila nas costas. Meu prédio não tinha elevador. Desci os quatro lances de escada a passos largos. Receosa. Na portaria, uma máquina de refrigerantes, daquelas que ainda aceitam as já inexistentes moedas de um centavo.
Durante a mudança, a máquina de refrigerantes foi o que chamou minha atenção. Brilhava à noite, ofuscando o vidro do lado oposto. Vidro este que escondia o que aquela portaria tinha de mais precioso: o ser humano responsável por minha segurança. Olhei em direção àquele insulfilm sem rosto e meus olhos gritaram por socorro. A janela da guarita abriu e, junto dela, abriu-se um sorriso. O porteiro logo fez questão de perguntar se eu precisava de alguma informação. Foi o Marcos quem me ensinou a tomar o ônibus. Ele também me contou qual era o melhor e mais barato lanche da cidade e alertou sobre os bairros perigosos. Conferiu se minha porta estava fechada das primeiras vezes que deixei o apartamento para passar o final de semana em Catanduva e me deu broncas pelo vazamento da pia cozinha, que eu nunca tive tempo suficiente para arrumar.
A última lembrança de Ribeirão é feito foto. Dentro do carro carregado de mudanças e memórias, olho para trás e vejo aquele que foi meu lar. O Marcos estava lá. E foi o último a me dar tchau. Ciclo completo.



Em Bauru, não tinha máquina de refrigerantes e, logo de cara, olhei para dentro da guarita. Eu já sabia como pegar ônibus e muitos medos já haviam sido curados pelo tempo. Mas os porteiros, ainda assim, apontaram os melhores encanadores quando o cano estourou. E, depois de três anos, ainda me lembram o dia de pagar a conta de luz. 
Notei, então, que meus olhos enxergam melhor do que aos 17 anos. Fui curada da cegueira que nos impede de ver por detrás de vidros de guaritas e máscaras sociais - algumas profissões devem continuar invisíveis. Fui curada e, desta cura, não há volta. Enxergar é amontoar dores, cores e sabores emocionais.


Hoje, ao entrar no elevador, decidi ler as novas regras do condomínio. No meio de tantos absurdos e privações, eis que me deparo com tal norma: 
“Não levar assuntos pessoais aos porteiros e funcionários do edifício. Permanecer na portaria somente o tempo necessário. As conversas com tais funcionários atrapalham suas atividades.”


Acredito que a segurança está intimamente ligada à confiança. E onde já se viu criar confiança sem conversa? Conversa de fim de tarde, alívio de um dia corrido. Relatos de experiências, medos compartilhados. Imitação dos diálogos debruçados em muros voltados para as calçadas, como na época em que o portão era do tamanho de nossos receios: pequenos. 
Passei pela portaria e ganhei um cumprimento acanhado. Postura de quem segue as regras, mas olhos que gritam por socorro, como os meus gritaram anos atrás.


Ao final das regras: “Faça sua parte para que todos possam ter uma boa convivência.”
Quanta incongruência! Boa convivência é sinônimo de riso regado a café e, se não for possível compartilhar de tal acompanhamento saboroso, fazer do bate-papo, ainda que rápido e efêmero, o tempero alegre dos dias.


Cheguei à triste conclusão: um condomínio nunca poderá ser lar. Um condomínio preocupa-se com leis e mandamentos. Cada um seu lugar, como deve ser. Lar é diferente. Todo mundo ao redor da mesa, seja da família de sangue ou do coração. Sem divisórias. 
Não acredito em boa convivência sem conversa. Conviver é mistura homogênea, independentemente do cargo ou do andar ocupado.
Regra para que vizinhos não se conversem nem precisa tomar espaço do quadro de avisos, a prosa há muito não existe. O elevador, metálico e frio, desprovido de proximidade. Encontrava na guarita um gostinho de lar. A partir de hoje, não mais.
O síndico, ou quem quer que tenha redigido aquele quadro de avisos, deve ter tara por organização – assim como muitos gestores e empresários. Inquietam-se quando algo ou alguém não cumpre à risca o planejado na descrição das funções de seu negócio. Porteiro é para abrir portão e vigiar. Condômino é para morar. O “bom dia” é liberado, mas, se não fizer questão, não faz parte do quadro de obrigações a serem cumpridas. Faça sua parte. Sua parte não é todo. Sua parte é o que importa.
Estamos à mercê de um sistema que, de tanto se importar com produtividade, esquece da matéria-prima: a essência humanística que ainda resiste e reside em cada um.


Logo, os porteiros serão todos substituídos por interfones eletrônicos. Afinal, estes são mais eficientes e não perdem tempo com conversa fiada. E nós? O que ameaçará nossa essência e nos colocará de escanteio no dia de amanhã? Termino este texto por aqui. Escrever deve, para muitos, ser como papear: pedra no caminho da produtividade.

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