terça-feira, 22 de setembro de 2015

Quando um toque de gratidão vale mais que o Sucesso inalcançável

Nunca fui amante íntima de textos filosóficos, muito menos defendi com unhas e dentes o conjunto de escritos de filósofos e pensadores limitados por seus nomes de batismo e títulos de publicações. Alguns aqui, outros acolá, marcaram vivências e transformaram perspectivas. Retalhos soltos, matéria-prima para a tecelagem da colcha do meu próprio eu. Mas um trecho de santo Agostinho, particularmente, pegou-me ainda enquanto estudante do ensino médio e caminha ao meu lado na tomada de decisões até hoje, no quase-fim do ensino superior. 
Eis o trecho: "Algumas coisas são para serem fruídas, outras para serem usadas, e outras ainda há que são para serem fruídas e usadas." 


As coisas úteis existem para alcançar ou produzir aquilo que se deseja. Ferramentas com finalidades definidas para diminuir o caminho entre o desejo e sua realização, estão aqui e ali para que tenhamos possibilidades. 

Por outro lado, há aquilo que existe para ser fruído e para nos dar prazer. 
Diante de tantas mudanças, o questionamento sobre quais rumos tomar mostra-se presente dia após dia. O princípio de realidade insiste em bater à porta. Esmurrá-la. Como um carrasco de filmes medievais, carrega a caixa de coisas úteis.
Uma vez que é convidado a entrar, o princípio da realidade, transvestido de carrasco, abre sua maleta e nos obriga a amar aquilo que é para ser usado. A exaustiva jornada de trabalho, os inúmeros certificados pendurados na parede, a imensidão do currículo Lattes. Desejamos tudo o que existe para ser usado e, quase que de repente, esquecemos da existência das coisas que existem para serem fruídas. 

Até o dia em que nossos olhos, cansados da inércia de permanecerem fechados, abrem-se ao sentirem o cheiro de orégano da pizza recém-assada. Despertam ao sentir o aconchego de um abraço, o barulho do mar. Faíscam ao encontrar outros olhos, dos quais havia fugido - sempre tão ocupado com as coisas úteis. Descobrem e relembram aquilo que não tem utilidade alguma, coisas que amamos por causa delas mesmas e não por sua finalidade. 
Inutilidade é uma palavra assustadora, quase uma sentença de morte. Mas santo Agostinho, em apenas duas linhas, me fez perder o medo do utilitarismo que guia nossas vidas. 
O medo era de me desprender dos objetos conhecidos pelos usos que têm. Um trabalho divido em turnos, manhã e tarde, é ferramenta para que o dinheiro caia na conta no final do mês. Assim como faca corta, o trabalho alimenta. Mas comer está distante de saborear. É preciso sentir os gostos, temperos e sabores. Degustar a vida. 

É preciso, acima de tudo, apegar-se, também, às coisas que dão prazer sem ter nenhuma utilidade. O famoso "doar-se para receber nada em troca". 
Fomos acostumados, enfim, a enxergar o trabalho como algo para ser usado. Ferramenta para atingir um objetivo, muitas vezes figurado em um distante Sucesso. Sim, com letras maiúsculas, pois senta-se no topo de uma montanha distante, imponente, dando-nos chicotadas quando desviamos o olhar de sua direção. 

Corri para o lado oposto e, enquanto desviava das chicotadas do Sucesso para chamar minha atenção e do carrasco da realidade que me seguia com afinco, entendi que trabalho não precisa, necessariamente, ser ferramenta. Pode morar junto das coisas que são para serem fruídas, além de usadas. 
Hoje, santo Agostinho fez-se presente. Confirmei minha teoria e respirei aliviada. Navegando em um mar de insegurança sobre o que virá a seguir, ganhei um remo extra para continuar driblando as ondas. Ao entregar um trabalho final, não recebi feedbacks formais ou fui posta em um tribunal da inquisição - no qual erros e acertos seriam contabilizados, recebi gratidão. 

A senhora, que agarra com força o pouco-pouquíssimo de visão que lhe resta, recebeu um CD com a gravação de um livro que havia pedido. Ela iria ler com os ouvidos. Viajaria pela nossa voz. 
Não apontou erros. Não pressionou. Não me disse o que era preciso melhorar. Mas tocou-me com suas mãos, olhou-me nos olhos e, com uma sinceridade quase totalmente escassa no mundo, agradeceu. 
Quando o trabalho deixa de ser ferramenta, o retorno deixa de ser feedback e uma planilha de metas a serem cumpridas. O trabalho, quando vira coisa feita para fruição, não engrandece a conta bancária com muitos dígitos, afinal, deixa de ser útil aos olhos da sociedade, mas infla a alma. Recebemos, em compensação, coisa rara: a gratidão daqueles que atinge. 
O Sucesso ficou ainda mais distante no topo de uma montanha fria e inescalável. Mas o toque da senhora que me agradeceu estava perto, quente como uma manhã de verão. De hoje em diante, não me resta dúvidas: deixo o encontro com o Sucesso para aqueles que preferem as longas e solitárias jornadas de feedbacks e reuniões. Eu quero trabalhar com aquilo que me aquece e receber, em troca, coração, além de pão. 
Santo Agostinho estava certo, existem coisas que são para serem usadas, mas sem esquecer de que são, também, para serem fruídas - o trabalho é a maior delas.

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