terça-feira, 22 de setembro de 2015

"O Lula é um ladrão, mas a Dilma? Ah, a Dilma é uma vagabunda!"




A questão não é política. A fila do pão pode ser reduto dos mais assombrosos absurdos presentes nos diálogos cotidianos. 

Quase nunca crio coragem para desperdiçar alguns minutos do pós-expediente na espera pela próxima fornada. Ontem senti saudade da tradição de família e fui em busca do pão francês das 18h. Na fila, intermediei o encontro de dois conhecidos: um homem de meia idade e uma mulher com olhos cansados de fitarem a mesma cena diariamente. Entediados. Cumprimentaram-se. Falaram sobre os filhos que moram longe. Não se importaram com a intrusa. Aliás, não desviaram o olhar para encarar aquela que respirava o ar que já passara pelas suas narinas, centímetros abaixo do seu campo de visão – como fazem com muitos que não atingem o topo da pirâmide econômica e social. 
Amenidades à parte, a política colocou-se em pauta. Torci para que o padeiro me presenteasse com o cheio de pão fresco, fazendo-o dissipar e preencher o espaço entre mim e os dois participantes da conversa. Nunca desejei com tanta intensidade uma fornada de pães. É melhor que o estômago esteja abarrotado de água, farinha e fermento a inundá-lo com o que viria a escutar – um discurso tão ácido quanto ulcerante. 

O diálogo seguiu fértil de acusações, ofensas, preconceito e, é claro, achismos. Mas o que me incomodou foi quando um deles comparou Lula à Dilma. Os dois eram farinha do mesmo saco, mas a Dilma era pior. A Dilma era, além de corrupta e ladra, vagabunda. Notando a boa receptividade do outro, continuou jorrando julgamentos pela boca, como água que pinga do cano do esgoto sem cessar. Ao final, completou: 

“O que me tranquiliza é saber que ela não vai aguentar a pressão. Mulher é mais fraca. Desiste mais fácil. Logo ela sai de cena.” 

O empenho de sucessivas gerações se traduziu nas bem sucedidas campanhas pelo sufrágio feminino, pelo direito à contracepção e à igualdade jurídica. Com o tempo, esperamos também soluções para as ainda pendentes questões de igualdade no trabalho e de tantas outras justas reivindicações femininas. Em épocas passadas, seria impensável a figura de uma mulher como presidente de um país. Hoje, tornou-se possível comprovar que podemos governar estabelecendo uma dissociação entre a personagem política e as características sexuais que carregamos conosco. Mas na fila do pão, lugar de mulher não é política. 
Na fila do pão, Lula é ladrão e justifica-se a ofensa pelos erros cometidos durante seu governo. Dilma é vagabunda e fraca unicamente por ser mulher – seu perfil profissional e político cai para segundo plano na discussão. 
Um homem e uma mulher conversando na fila do pão. E é a boca da mulher que as aspas desse texto são proferidas – o machismo a consumiu por inteiro ao longo dos anos.
Sai a fornada e vejo a mulher de olhos entediados reclamar. Esperou para levar pão quentinho e, ainda assim, o marido vai encontrar uma forma de apontar um defeito. Disse que não é valorizada. 

Grande ironia! Se nem ela acredita na força das mulheres, como é que vamos fazer o resto do mundo acreditar? 

Peguei o saco de pães e encarei seus olhos tão sem brilho quanto a embalagem em minhas mãos. Não senti raiva. O machismo cumpriu seu papel naquela mulher e a fez acreditar que não somos capazes - amarrou suas mãos com o conformismo. 
Talvez a fraqueza que aponte em Dilma seja a sua própria - aquela que a impede de tirar o tédio e o cansaço do olhar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário