sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Bala que mata, desinteresse que cega




É preciso ouvir o que as pessoas têm a dizer na fila do supermercado. Era final de tarde e os olhos da moça do caixa mostravam o cansaço acumulado dos dias. Olheiras refletidas em quase todos que compunham aquela sucessão de humanos abatidos pela jornada de trabalho que acabara há pouco.
Na parede em frente, uma TV ligada em um programa sensacionalista, tão comum na programação atual. A notícia era sobre um policial que disparou quatro tiros contra dois jovens que já estavam rendidos. Entre mim e as imagens da TV, um obstáculo. Uma mulher com seus mais de 50 anos, pelo menos em aparência. Unhas de um rosa metálico descascado e tão judiado quanto a pele de seu rosto. Carregava junto ao peito um porta-moedas florido, com fecho em forma de coração.
Indignada com os comentários feitos pelo apresentador sobre o fato ocorrido, recorreu à moça uniformizada que passava os poucos itens de sua compra:

- Onde já se viu! Hoje em dia nossos meninos morrem por muito pouco!


A funcionária do supermercado nem se deu ao trabalho de levantar os olhos do leitor de código de barras. Com seu batom vermelho, retocado a cada cliente que encerrava o pagamento, ela simplesmente respondeu:

- Se o polícia atirou, é porque esses meninos estavam armados. E ele fez muito bem. Protegeu a própria vida.

Sem conseguir o apoio desejado olhando para frente, a senhora do porta-moedas florido olhou para trás em busca de um olhar que sustentasse a sua indignação. Um silêncio abafado foi protagonista do momento. Essa à minha frente, tal como mil outras, era mais uma das mães que perderam seus filhos para o tráfico. Não, ao contrário do que pensamos de imediato, o menino não era usuário de drogas. Ele apenas caminhava para casa, quando foi vítima de uma bala perdida. A mulher chegou à cena minutos depois e uma lágrima rolou em sua face como sinal de adeus. Experimentou uma dor até então desconhecida. Até a alma se curvou diante da brutalidade exposta aos seus olhos.

Contendo a raiva e a dor que sentiu, prometera que vingaria a morte do filho e descobriria o dono daquela arma que errou a mira e impediu que o adolescente completasse o seu trajeto. Tempos depois, eis a sentença: um atirador de elite, mirando em um famoso traficante do bairro, descumpriu as ordem de seu superior e, imaginando ser o melhor momento, não quis esperar, atirou. Atirou mais uma vez, para ter certeza de que resolveria aquele problema, acabando, definitivamente, com a vida do homem que comandava o comércio de drogas em grande parte da cidade. Mas a violência de duplo sentido no tráfico não se contenta com apenas uma vítima. A bala do fuzil atravessou o traficante, ricocheteou em qualquer esquina e atingiu o menino.

A matriarca nem teve chance de pisar em um tribunal. O caso foi arquivado. Mas o sentimento de perda daquela família nunca será sepultado sob as cinzas da memória. Quando se olhar no espelho pela manhã, a mulher, cuja identidade nunca teve lugar de destaque, enxergará uma face surrada pelo imediatismo humano. Uma pressa em querer exterminar os problemas que nós mesmos causamos. Uma pressa que nos impede de olhar o outro como igual. A vontade de encurtar soluções e apostar no que se dispõe para nossos olhos logo depois da ação.
Um tiro, à primeira vista, mostra-se mais certeiro. Entretanto, a morte foi feita para coisas feitas de carne. O tráfico não acaba com artilharia pesada. Não morre. Só quem morre é o filho da senhora do porta-moedas florido.

A mulher do caixa, que presume armamento no bolso dos meninos mortos à queima roupa pela polícia, aqueles que foram manchete do programa sensacionalista, esquece que os ladrilhos do seu caminho poderiam ser os mesmos do caminho deles. Aqueles que acreditam que exterminar um problema social é sinônimo de sangue derramado, talvez não consigam se lembrar de que bala perdida não escolhe peito para se alojar.

Minha avó é analfabeta, nunca foi boa com as letras, mas sabe calcular o troco como ninguém. Apesar da quase inexistente formação acadêmica, é tão sábia que consegue ensinar nas miudezas dos afazeres diários. Sempre disse que, sem infância, crescemos tristes. Não aprendemos o que é, de fato, a genuína felicidade. Aquela mulher do porta-moedas florido, que passava suas compras minguadas no caixa do supermercado, carregava a tristeza em um olhar que buscava a borda, um apoio em um mar de gente.  E a tristeza lhe caía bem.

Tristeza que nasceu do abandono. Do casamento precoce. Da mãe que queria vê-la fora de casa. Uma boca a menos para alimentar. Do marido que abusava da hierarquia que ela aprendera a respeitar desde cedo. Da infância que nunca chegou. Das bonecas que não saíram das vitrines de lojas caras e logo foram substituídas por filhos de carne e osso. Os mesmos filhos que fariam o caminho da mira das armas que, por acaso ou por destino, acertaram o peito de um deles.

E quem culpar pelo buraco cheio de pólvora feito na camiseta listrada de um ou pelo buraco repleto do vazio da ausência de outro? Existe alvo certo para rumar a culpa de uma tragédia como essa? Os pais da mulher do porta-moedas florido, que plantaram a semente da tristeza naquelas mãos calejadas? A própria mulher, por não revidar contra o marido agressivo? O menino, por estar caminhando por ali na hora errada?

Enquanto a mulher esvaziava as moedas sobre o balcão metálico do caixa, murchando as únicas flores que ganhara em vida, outra notícia tomava conta do telejornal. Aqueles dois meninos, cujas mortes foram anunciadas há pouco, logo seriam esquecidos.
Ela segurou as sacolas com apenas uma das mãos e despediu-se da funcionária como se fosse uma velha conhecida. Quando chegou a minha vez, eu fiz questão de perguntar se a moça de batom vermelho sabia o nome daquela senhora que transbordava coragem pelos olhos. A funcionária disse que ela ia àquele mercado todas as semanas, quando conseguia juntar alguns trocados para comprar os mantimentos da família. Continuou afirmando que sempre trocavam cumprimentos e alguma prosa, mas que nunca se preocupara em perguntar-lhe o nome. Naquele momento, percebi que a culpa não tinha um único alvo. Pairava sobre a nossa inércia e desinteresse. Aquela mulher não tinha espaço nesse mundo. Era completa estrangeira. Seus filhos também o seriam. A morte de um deles tornaria-se sangue pisado na alma, de tanto esperar a cicatrização.

A culpa era nossa. No plural.


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