É
preciso ouvir o que as pessoas têm a dizer na fila do supermercado. Era final
de tarde e os olhos da moça do caixa mostravam o cansaço acumulado dos dias.
Olheiras refletidas em quase todos que compunham aquela sucessão de humanos
abatidos pela jornada de trabalho que acabara há pouco.
Na
parede em frente, uma TV ligada em um programa sensacionalista, tão comum na
programação atual. A notícia era sobre um policial que disparou quatro tiros
contra dois jovens que já estavam rendidos. Entre mim e as imagens da TV, um
obstáculo. Uma mulher com seus mais de 50 anos, pelo menos em aparência. Unhas
de um rosa metálico descascado e tão judiado quanto a pele de seu rosto. Carregava
junto ao peito um porta-moedas florido, com fecho em forma de coração.
Indignada
com os comentários feitos pelo apresentador sobre o fato ocorrido, recorreu à
moça uniformizada que passava os poucos itens de sua compra:
-
Onde já se viu! Hoje em dia nossos meninos morrem por muito pouco!
A
funcionária do supermercado nem se deu ao trabalho de levantar os olhos do
leitor de código de barras. Com seu batom vermelho, retocado a cada cliente que
encerrava o pagamento, ela simplesmente respondeu:
- Se
o polícia atirou, é porque esses meninos estavam armados. E ele fez muito bem.
Protegeu a própria vida.
Sem
conseguir o apoio desejado olhando para frente, a senhora do porta-moedas
florido olhou para trás em busca de um olhar que sustentasse a sua indignação.
Um silêncio abafado foi protagonista do momento. Essa à minha frente, tal como
mil outras, era mais uma das mães que perderam seus filhos para o tráfico. Não,
ao contrário do que pensamos de imediato, o menino não era usuário de drogas.
Ele apenas caminhava para casa, quando foi vítima de uma bala perdida. A mulher
chegou à cena minutos depois e uma lágrima rolou em sua face como sinal de
adeus. Experimentou uma dor até então desconhecida. Até a alma se curvou diante
da brutalidade exposta aos seus olhos.
Contendo
a raiva e a dor que sentiu, prometera que vingaria a morte do filho e
descobriria o dono daquela arma que errou a mira e impediu que o adolescente completasse
o seu trajeto. Tempos depois, eis a sentença: um atirador de elite, mirando em
um famoso traficante do bairro, descumpriu as ordem de seu superior e,
imaginando ser o melhor momento, não quis esperar, atirou. Atirou mais uma vez,
para ter certeza de que resolveria aquele problema, acabando, definitivamente,
com a vida do homem que comandava o comércio de drogas em grande parte da
cidade. Mas a violência de duplo sentido no tráfico não se contenta com apenas
uma vítima. A bala do fuzil atravessou o traficante, ricocheteou em qualquer
esquina e atingiu o menino.
A
matriarca nem teve chance de pisar em um tribunal. O caso foi arquivado. Mas o
sentimento de perda daquela família nunca será sepultado sob as cinzas da
memória. Quando se olhar no espelho pela manhã, a mulher, cuja identidade nunca
teve lugar de destaque, enxergará uma face surrada pelo imediatismo humano. Uma
pressa em querer exterminar os problemas que nós mesmos causamos. Uma pressa
que nos impede de olhar o outro como igual. A vontade de encurtar soluções e
apostar no que se dispõe para nossos olhos logo depois da ação.
Um
tiro, à primeira vista, mostra-se mais certeiro. Entretanto, a morte foi feita
para coisas feitas de carne. O tráfico não acaba com artilharia pesada. Não
morre. Só quem morre é o filho da senhora do porta-moedas florido.
A
mulher do caixa, que presume armamento no bolso dos meninos mortos à queima
roupa pela polícia, aqueles que foram manchete do programa sensacionalista,
esquece que os ladrilhos do seu caminho poderiam ser os mesmos do caminho
deles. Aqueles que acreditam que exterminar um problema social é sinônimo de
sangue derramado, talvez não consigam se lembrar de que bala perdida não
escolhe peito para se alojar.
Minha
avó é analfabeta, nunca foi boa com as letras, mas sabe calcular o troco como
ninguém. Apesar da quase inexistente formação acadêmica, é tão sábia que
consegue ensinar nas miudezas dos afazeres diários. Sempre disse que, sem
infância, crescemos tristes. Não aprendemos o que é, de fato, a genuína
felicidade. Aquela mulher do porta-moedas florido, que passava suas compras minguadas
no caixa do supermercado, carregava a tristeza em um olhar que buscava a borda,
um apoio em um mar de gente. E a
tristeza lhe caía bem.
Tristeza
que nasceu do abandono. Do casamento precoce. Da mãe que queria vê-la fora de
casa. Uma boca a menos para alimentar. Do marido que abusava da hierarquia que
ela aprendera a respeitar desde cedo. Da infância que nunca chegou. Das bonecas
que não saíram das vitrines de lojas caras e logo foram substituídas por filhos
de carne e osso. Os mesmos filhos que fariam o caminho da mira das armas que,
por acaso ou por destino, acertaram o peito de um deles.
E
quem culpar pelo buraco cheio de pólvora feito na camiseta listrada de um ou
pelo buraco repleto do vazio da ausência de outro? Existe alvo certo para rumar
a culpa de uma tragédia como essa? Os pais da mulher do porta-moedas florido,
que plantaram a semente da tristeza naquelas mãos calejadas? A própria mulher,
por não revidar contra o marido agressivo? O menino, por estar caminhando por
ali na hora errada?
Enquanto
a mulher esvaziava as moedas sobre o balcão metálico do caixa, murchando as
únicas flores que ganhara em vida, outra notícia tomava conta do telejornal.
Aqueles dois meninos, cujas mortes foram anunciadas há pouco, logo seriam
esquecidos.
Ela
segurou as sacolas com apenas uma das mãos e despediu-se da funcionária como se
fosse uma velha conhecida. Quando chegou a minha vez, eu fiz questão de
perguntar se a moça de batom vermelho sabia o nome daquela senhora que transbordava
coragem pelos olhos. A funcionária disse que ela ia àquele mercado todas as
semanas, quando conseguia juntar alguns trocados para comprar os mantimentos da
família. Continuou afirmando que sempre trocavam cumprimentos e alguma prosa,
mas que nunca se preocupara em perguntar-lhe o nome. Naquele momento, percebi
que a culpa não tinha um único alvo. Pairava sobre a nossa inércia e
desinteresse. Aquela mulher não tinha espaço nesse mundo. Era completa
estrangeira. Seus filhos também o seriam. A morte de um deles tornaria-se
sangue pisado na alma, de tanto esperar a cicatrização.
A
culpa era nossa. No plural.
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