sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Cuspa esses padrões, mulher


Essa história é baseada em fatos e problemas reais. Juliana existe. É de carne, osso e alma, como você, que insiste em torcer o nariz ao encarar o espelho e enfrentar todas as suas imperfeições.

Ela tinha um recorte de revista na porta de seu guarda-roupas. Disse não se lembrar de muita coisa daquela época dos 11 aos 13 anos, mas conseguiu evocar perfeitamente os traços e as características do corpo da modelo que habitava seu armário e sua mente. Juliana nem sempre foi assim.

Quando criança, foi diagnosticada com obesidade infantil. Apesar de não ter problemas com seu corpo, a sociedade insistia em calcar os sonhos daqueles que se encontravam acima do peso. Chegou o grande dia! Juliana pisou em um estúdio fotográfico pela primeira vez. Ela, finalmente, ia escolher seu animal predileto e posar para a fotografia que imitava uma famosa campanha publicitária. Mas o leão e seus amigos mais desejados não serviam em Juliana. Para o tamanho dela, apenas a roupa monocromática do gambá, um animal que ela nunca cobiçou ser.


Pesando mais de 80kg, a menina iniciou a rotina de visitas à nutricionista. Começou a crescer dentro dela a preocupação da mãe. Ela tinha que emagrecer para evitar a hipertensão, um problema já sedimentado na família. Criança gosta de correr solta, mas colocaram rédeas em Juliana. Fizeram-na ser disciplinada desde cedo.

De pouco a pouco, conseguiu atingir um peso ideal. A pré-adolescência batia-lhe à porta e sua percepção corporal não era mais a mesma. O corpo, antes ferramenta exclusiva do brincar, tornou-se, nesta época, passaporte de aceitação. Em uma de suas idas ao consultório da nutricionista, a menina pensou que podia ir além. A cada quilo eliminado, um elogio de colegas e familiares era acrescentado à lista. Ela não queria estabilidade. Seus ouvidos acostumaram-se com as frases de incentivo.

Quando emagrecemos, somos notadas. Assim como quando engordamos. O problema é que de um lado estão os aplausos, do outro, apenas vaias. Juliana queria ser aplaudida de pé. Encontrou pela casa revistas com promessas encantadoras. Infinitos anúncios de dietas malucas. Aceitou o desafio e iniciou uma busca incontrolável por olhares de aprovação.
Decorou a tabela calórica de todos os alimentos, comprou uma balança e tornou-se vigilante. O comer deixou de ser um prazer e ela esqueceu como era lambuzar os dedos de satisfação.

O nutricionista, ao montar um cardápio, pensa em vitaminas, carboidratos, proteínas. Mas o comer não é ato tabelado. É feito de desejo. Quando visitamos a casa de nossas avós, elas não se preocupam em matar nossa fome. Primeiramente, ambicionam matar-nos de prazer. Rubem Alves dizia que “a cozinha é o laboratório alquímico onde os sonhos, pela alquimia culinária, são transformados em comida”, por isso, os sabores são os responsáveis por promover o encontro entre o desejo e a satisfação, a fim de que se abracem e façam amor.
Juliana abdicou dos sabores e temperos, substituindo-os por padrões estéticos que inundavam seus olhos. Não havia mais espaço em seu estômago. Cheio de imagens como aquela que colara na porta de seu guarda-roupas, não mais permitia a entrada do que outrora lhe saciaria.
O processo de identificação estava quase concluído. Pesando 51kg, pouco para sua estrutura corporal de ossos graúdos, a menina introjetara a imagem de uma das tantas capas de revista e, assim, deixou de amar quem costumava ser antes de se empanturrar de arquétipos socialmente aceitos.

Seguia um cronograma rígido. Fazia contas a todo momento. Torturava-se antes de subir na tão temida balança. Décimos tinham o poder de transformar o seu humor. Com 46kg, acostumou-se a sentir fome e deixou de se reconhecer no espelho. Muitas vezes, ao sair do banho e deixar cair a toalha, a garota tentava definir se aquela imagem refletida era sua ou de alguém que não mais conhecia. Nunca chegou à uma conclusão clara, entretanto preferia aquela desconhecida que ouvia um aplauso a cada centímetro de cintura diminuído na fita métrica.

Sua felicidade ficou restrita aos números. Desenvolvera técnicas próprias para confirmar se estava no caminho certo. Como em um ritual, chegava da escola, despia-se e deitava no chão frio de barriga para baixo. Se os ossos tocassem o piso claro de seu quarto, era um dia de vitória. Colocava o pijama ainda no período da tarde. Sem forças ou energia para qualquer atividade além do dormir. Mas reservava ânimo para fechar todos os dedos da mão ao redor do pulso e uni-los, como um cadeado que engaiolava sua vontade de viver.

De tanto picar a carne em pedaços miúdos para ter a sensação de que havia mais comida no prato, Juliana chamou a atenção de seus pais e amigas do colégio. Começaram as brigas. Ela não conseguia entender como é que ninguém valorizava todo o seu esforço para chegar até ali. Enchia-se de raiva e criava camadas de negação.

Sua mãe vestiu-se de desespero. Desejava que todas suas lágrimas derramadas alimentassem o corpo e a alma de sua filha. Arrependeu-se, de repente, de todas as vezes que a repreendeu pelos doces devorados. Sentiu saudade da paixão que a filha tinha pelo açúcar. Pediu aos céus que pudesse adoçar novamente a vida daquela que ocupava grande parte de seu coração. As visitas à nutricionista foram retomadas.

Mas Juliana resistiu. Logo na primeira consulta, recebeu a notícia de que estava anoréxica. Enquanto estava sobre a balança, aquela mulher de roupa branca falava sem parar nos riscos aos quais Juliana estava exposta. A menina ensurdeceu. A única coisa que conseguia pensar era que sua magreza causava extrema inveja em quem não a tinha, a ponto de desejarem roubar-lhe todos os aplausos a ela reservados. Saiu do consultório com um cardápio que lhe faria ganhar quase todos os quilos que lutou incansavelmente para perder. Seu esforço seria massacrado pela vontade de seus pais e colegas.

O estado de tensão permanente não arredou o pé e os problemas começaram a se intensificar. Modificações hormonais bruscas. Sono constante. Menstruação ausente. Isolou-se de um mundo que costumava a acolher tão bem. A linha que separa a magreza aplaudida daquela problemática é mesmo muito tênue. As brigas tornaram-se constantes.
Era como um cabo de guerra. Juliana puxava de um lado, o mundo arrastava de outro. Sem forças, cedeu. Vomitou tudo aquilo que ocupava espaço em seu estômago. As capas de revistas perfeitas, comentários que exaltavam o pouco peso, padrões impostos dia após dia por pessoas próximas e distantes. Aquilo não mais faria parte dela. Como aquele líquido translúcido de gosto amargo que sai de nossa boca quando não temos mais o que regurgitar, a menina livrou-se das amarras e, após anos de reclusão, sentiu novamente o açúcar invadir-lhe o paladar.

Juliana não é mais anoréxica. Come normalmente e não tem medo do que seu reflexo no espelho irá lhe mostrar. Mas admite que o distúrbio será seu eterno companheiro. Ainda que de forma tímida, a anorexia permanece ali, rodando seus pensamentos. Ela sabe que não pode descuidar. Como cão de guarda, faz vigia dos portões que limita o espaço do transtorno em sua mente. A anorexia será sempre uma farpa entranhada na carne, sobre a qual cresceu pele que impediu sua retirada.

Libertou-se, cortou os cabelos e fez algumas tatuagens. Juliana hoje não demonstra mais fraqueza. Encontrou inspiração para aceitar a diversificação do corpo feminino. Aprendeu que o amor próprio cura grande parte das feridas abertas pelo preconceito.

Essa não é mais uma história de superação. A trajetória de Juliana tem força suficiente para ir além e se tornar um alerta. Enquanto agências de modelos pisam nos sonhos daquelas que não vestem 36, milhares de meninas perdem a energia por negar o jantar. Sempre que uma revista publica uma matéria sobre as restrições destinadas às mulheres acima do peso, centenas de garotas abdicam do prazer e introjetam preconceito.


Para as que abarrotaram seu interior com padrões estéticos que nunca farão parte do seu próprio eu, cuspam eles para fora e liberem espaço para satisfação de viver em paz consigo mesma. Afinal, ninguém tem o direito de engaiolar a beleza – esse substantivo que só quer voar por entre todos nós.

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