Essa
história é baseada em fatos e problemas reais. Juliana existe. É de carne, osso
e alma, como você, que insiste em torcer o nariz ao encarar o espelho e
enfrentar todas as suas imperfeições.
Ela
tinha um recorte de revista na porta de seu guarda-roupas. Disse não se lembrar
de muita coisa daquela época dos 11 aos 13 anos, mas conseguiu evocar
perfeitamente os traços e as características do corpo da modelo que habitava
seu armário e sua mente. Juliana nem sempre foi assim.
Quando
criança, foi diagnosticada com obesidade infantil. Apesar de não ter problemas
com seu corpo, a sociedade insistia em calcar os sonhos daqueles que se
encontravam acima do peso. Chegou o grande dia! Juliana pisou em um estúdio fotográfico
pela primeira vez. Ela, finalmente, ia escolher seu animal predileto e posar
para a fotografia que imitava uma famosa campanha publicitária. Mas o leão e
seus amigos mais desejados não serviam em Juliana. Para o tamanho dela, apenas
a roupa monocromática do gambá, um animal que ela nunca cobiçou ser.
Pesando
mais de 80kg, a menina iniciou a rotina de visitas à nutricionista. Começou a
crescer dentro dela a preocupação da mãe. Ela tinha que emagrecer para evitar a
hipertensão, um problema já sedimentado na família. Criança gosta de correr
solta, mas colocaram rédeas em Juliana. Fizeram-na ser disciplinada desde cedo.
De
pouco a pouco, conseguiu atingir um peso ideal. A pré-adolescência batia-lhe à
porta e sua percepção corporal não era mais a mesma. O corpo, antes ferramenta
exclusiva do brincar, tornou-se, nesta época, passaporte de aceitação. Em uma
de suas idas ao consultório da nutricionista, a menina pensou que podia ir
além. A cada quilo eliminado, um elogio de colegas e familiares era acrescentado
à lista. Ela não queria estabilidade. Seus ouvidos acostumaram-se com as frases
de incentivo.
Quando
emagrecemos, somos notadas. Assim como quando engordamos. O problema é que de
um lado estão os aplausos, do outro, apenas vaias. Juliana queria ser aplaudida
de pé. Encontrou pela casa revistas com promessas encantadoras. Infinitos anúncios
de dietas malucas. Aceitou o desafio e iniciou uma busca incontrolável por
olhares de aprovação.
Decorou
a tabela calórica de todos os alimentos, comprou uma balança e tornou-se
vigilante. O comer deixou de ser um prazer e ela esqueceu como era lambuzar os
dedos de satisfação.
O
nutricionista, ao montar um cardápio, pensa em vitaminas, carboidratos,
proteínas. Mas o comer não é ato tabelado. É feito de desejo. Quando visitamos
a casa de nossas avós, elas não se preocupam em matar nossa fome.
Primeiramente, ambicionam matar-nos de prazer. Rubem Alves dizia que “a cozinha é o laboratório alquímico onde os
sonhos, pela alquimia culinária, são transformados em comida”, por isso, os
sabores são os responsáveis por promover o encontro entre o desejo e a
satisfação, a fim de que se abracem e façam amor.
Juliana
abdicou dos sabores e temperos, substituindo-os por padrões estéticos que
inundavam seus olhos. Não havia mais espaço em seu estômago. Cheio de imagens
como aquela que colara na porta de seu guarda-roupas, não mais permitia a
entrada do que outrora lhe saciaria.
O
processo de identificação estava quase concluído. Pesando 51kg, pouco para sua
estrutura corporal de ossos graúdos, a menina introjetara a imagem de uma das
tantas capas de revista e, assim, deixou de amar quem costumava ser antes de se
empanturrar de arquétipos socialmente aceitos.
Seguia
um cronograma rígido. Fazia contas a todo momento. Torturava-se antes de subir
na tão temida balança. Décimos tinham o poder de transformar o seu humor. Com
46kg, acostumou-se a sentir fome e deixou de se reconhecer no espelho. Muitas
vezes, ao sair do banho e deixar cair a toalha, a garota tentava definir se
aquela imagem refletida era sua ou de alguém que não mais conhecia. Nunca
chegou à uma conclusão clara, entretanto preferia aquela desconhecida que ouvia
um aplauso a cada centímetro de cintura diminuído na fita métrica.
Sua
felicidade ficou restrita aos números. Desenvolvera técnicas próprias para
confirmar se estava no caminho certo. Como em um ritual, chegava da escola,
despia-se e deitava no chão frio de barriga para baixo. Se os ossos tocassem o
piso claro de seu quarto, era um dia de vitória. Colocava o pijama ainda no
período da tarde. Sem forças ou energia para qualquer atividade além do dormir.
Mas reservava ânimo para fechar todos os dedos da mão ao redor do pulso e
uni-los, como um cadeado que engaiolava sua vontade de viver.
De
tanto picar a carne em pedaços miúdos para ter a sensação de que havia mais
comida no prato, Juliana chamou a atenção de seus pais e amigas do colégio.
Começaram as brigas. Ela não conseguia entender como é que ninguém valorizava
todo o seu esforço para chegar até ali. Enchia-se de raiva e criava camadas de
negação.
Sua
mãe vestiu-se de desespero. Desejava que todas suas lágrimas derramadas
alimentassem o corpo e a alma de sua filha. Arrependeu-se, de repente, de todas
as vezes que a repreendeu pelos doces devorados. Sentiu saudade da paixão que a
filha tinha pelo açúcar. Pediu aos céus que pudesse adoçar novamente a vida
daquela que ocupava grande parte de seu coração. As visitas à nutricionista
foram retomadas.
Mas
Juliana resistiu. Logo na primeira consulta, recebeu a notícia de que estava
anoréxica. Enquanto estava sobre a balança, aquela mulher de roupa branca
falava sem parar nos riscos aos quais Juliana estava exposta. A menina
ensurdeceu. A única coisa que conseguia pensar era que sua magreza causava
extrema inveja em quem não a tinha, a ponto de desejarem roubar-lhe todos os
aplausos a ela reservados. Saiu do consultório com um cardápio que lhe faria
ganhar quase todos os quilos que lutou incansavelmente para perder. Seu esforço
seria massacrado pela vontade de seus pais e colegas.
O
estado de tensão permanente não arredou o pé e os problemas começaram a se
intensificar. Modificações hormonais bruscas. Sono constante. Menstruação
ausente. Isolou-se de um mundo que costumava a acolher tão bem. A linha que
separa a magreza aplaudida daquela problemática é mesmo muito tênue. As brigas tornaram-se
constantes.
Era
como um cabo de guerra. Juliana puxava de um lado, o mundo arrastava de outro.
Sem forças, cedeu. Vomitou tudo aquilo que ocupava espaço em seu estômago. As
capas de revistas perfeitas, comentários que exaltavam o pouco peso, padrões
impostos dia após dia por pessoas próximas e distantes. Aquilo não mais faria
parte dela. Como aquele líquido translúcido de gosto amargo que sai de nossa
boca quando não temos mais o que regurgitar, a menina livrou-se das amarras e,
após anos de reclusão, sentiu novamente o açúcar invadir-lhe o paladar.
Juliana
não é mais anoréxica. Come normalmente e não tem medo do que seu reflexo no
espelho irá lhe mostrar. Mas admite que o distúrbio será seu eterno
companheiro. Ainda que de forma tímida, a anorexia permanece ali, rodando seus
pensamentos. Ela sabe que não pode descuidar. Como cão de guarda, faz vigia dos
portões que limita o espaço do transtorno em sua mente. A anorexia será sempre
uma farpa entranhada na carne, sobre a qual cresceu pele que impediu sua
retirada.
Libertou-se,
cortou os cabelos e fez algumas tatuagens. Juliana hoje não demonstra mais
fraqueza. Encontrou inspiração para aceitar a diversificação do corpo feminino.
Aprendeu que o amor próprio cura grande parte das feridas abertas pelo
preconceito.
Essa
não é mais uma história de superação. A trajetória de Juliana tem força
suficiente para ir além e se tornar um alerta. Enquanto agências de modelos
pisam nos sonhos daquelas que não vestem 36, milhares de meninas perdem a
energia por negar o jantar. Sempre que uma revista publica uma matéria sobre as
restrições destinadas às mulheres acima do peso, centenas de garotas abdicam do
prazer e introjetam preconceito.
Para
as que abarrotaram seu interior com padrões estéticos que nunca farão parte do
seu próprio eu, cuspam eles para fora e liberem espaço para satisfação de viver
em paz consigo mesma. Afinal, ninguém tem o direito de engaiolar a beleza –
esse substantivo que só quer voar por entre todos nós.
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