sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Precisamos falar sobre Schopenhauer: ser mãe não é obrigatoriedade feminina



Traçaram o meu caminho antes mesmo de eu nascer. Quando minha mãe saiu da sala do ginecologista sabendo que seria uma menina, logo imaginou a decoração do meu quarto. Comprou o primeiro vestido assim que deixou o consultório e já imaginou todo o meu futuro pela frente. Enquanto eu estava ali, presa naquele líquido amniótico.

Quando nasci, todos os meus familiares já esperavam ansiosos pelo primeiro passo. Quando andei, pelas primeiras palavras. Eles gostam de antecipar os fatos na vida de uma criança. Principalmente, porque, dessa forma, conseguem ter o controle sobre todos eles.
Eu mal tinha saído das fraldas e todos já sabiam que eu frequentaria a escola cheia de penduricalhos nos cabelos. Ninguém me perguntou se aquilo incomodava. Simplesmente equilibraram borboletas e laços delicados demais. Enquanto os meninos brincavam alegremente no pátio da escola, as meninas, em sua maioria, permaneciam sentadas eretas. Todo esforço do mundo para não desmanchar o penteado tão bem elaborado pela mãe  antes do horário escolar.


Quando minhas pernas ficaram grandes demais para o colo, fecharam-nas para sempre. Cruzá-las sobre a cadeira tornou-se pecado mortal. Menina não senta de perna aberta, eles disseram.
Para completar o processo de educação corporal, eis que surge uma sacola em minha cama. Dentro dela, um amontoado rosa. Collants, meias, saias e shorts. Já era hora de começar o ballet. Controlaram meus cabelos em coques apertados e agora paralisaram minhas pernas em movimentos precisos e impecáveis. Falhei, é claro. Não consegui um espacate. Gostava mesmo era de assistir às aulas de karatê que começavam logo em seguida.

O primeiro sutiã, a primeira maquiagem. Aliás, o primeiro batom foi presente daquela tia que nunca aparecera até então. Eu, vivenciando o mundo com pouco mais de um metro de altura, erguia os olhos e, silenciosamente, questionava: Quem foi que disse que eu gosto dessas paletas de sombras em formato de coração?

As formalidades são comprimidos enormes que engolimos sem um copo d’água. A seco. Eles não se preocupam e nunca se preocuparam com individualidade e singularidade. É só ver uma vagina no ultrassom e já presumem nossos gostos e aparência. Maquiagem a gente joga no lixo. Mas como fugir dos contratos sociais?
Eles disseram que é preciso constituir família. E, a cada Natal, fazem questão de nos cobrar a data do casamento que nunca chega. Disseram também que a maternidade é um dos momentos mais belos da vida de uma mulher. Fizeram-nos carregar o peso de parir ao menos um filho por vida. É por essas e outras que precisamos falar sobre Schopenhauer.

Em 1851, o filósofo escreveu um de seus textos mais famosos, a fábula do porco-espinho:

“Num dia frio de inverno, alguns porcos-espinhos se juntaram para se aquecerem com o calor de seus corpos. Mas logo viram que estavam se espetando e se afastaram. Ficaram com frio de novo e se juntaram, ficando entre dois males até descobrirem a distância adequada. Assim é na sociedade, onde o vazio e a monotonia fazem com que os homens se aproximem, mas seus muitos defeitos, desagradáveis e repelentes, fazem com que se afastem.”

Schopenhauer mostra sua fria visão dos relacionamentos humanos: quanto maior a proximidade entre dois indivíduos, maior a probabilidade de eles se ferirem mutuamente. O que nos resta? Enfrentar o frio da solidão ou aceitar, em busca de calor, as invasões que nos espetam com a proximidade?

Os espinhos da mulher nem sempre foram tão pontiagudos. Eram aparados diariamente. Nosso mundo foi, desde sempre, invadido por outros porcos-espinhos. Nunca machucamos aqueles que ultrapassaram as barreiras e ditaram as regras que deveríamos seguir. Porcos-espinhos domados. Aceitamos, encolhidas em nossas próprias vontades, a maternidade como obrigatoriedade feminina.
Numa lista de itens que farão parte da decoração do quarto da filha mulher, a mãe já imagina seu vestido de noiva e nome do futuro neto ou da futura neta. Nascemos com os padrões estéticos em uma mão e a o título de mãe na outra. Nunca nos perguntaram se desejamos as transformações que ocorrerão em nossos corpos. A recusa de uma mulher à maternidade parece ser a maior ameaça visível à continuidade das famílias. Mulher que não enxerga na maternidade o ponto alto de sua existência vira sinal de mau presságio. Mas nossos espinhos começaram a crescer.

Cansadas de buscar aprovação e calor no olhar do outro, muitas mulheres escolheram afastar-se das normas e abrir mão do título que lhe impuseram desde o nascimento. Ganharam coragem suficiente para assumir que a gravidez as assusta. Soltaram a voz para afirmar que a maternidade, aos seus olhos, é sinônimo de futuro restrito, monopolizado pela servidão ao filho.

Conheci, certa vez, um mulher de trinta e poucos anos. Quase quarenta. Quando completou uma década de tratamentos em clínicas de fertilidade, desistiu. O marido ficou incrédulo. Ela quis desistir. Disse que nunca parou para pensar sobre filhos, uma vez que essa ideia lhe parecia tão intrínseca. Nasceu com a opinião lapidada. E viveu grande parte da vida com o peso da culpa por sua infertilidade. Quando deu por si, percebeu que gostaria de dedicar sua vida a outra atividade. Sua profissão pedia que viajasse muito. Abriu mão de ser mãe e, com seus espinhos afiados, afastou qualquer sinal de preconceito ou julgamento mal elaborado.

Schopenhauer estava certo quando disse que quem tem muito calor interno prefere se manter afastado da sociedade para não dar nem receber problemas e aborrecimentos. Quando assumimos uma posição contrária, os porcos-espinhos se afastam. É difícil engolir uma família que não estampa propaganda de margarina. A aprovação do texto que define família como a união entre homem e mulher pela Câmara dos Deputados é a maior prova disso. Mas, mulheres, nós temos calor de sobra para diminuir essa proximidade que se confunde com invasão. É preciso soltar os espinhos e ganhar espaço para tomar uma decisão que diz respeito ao nosso corpo. Propriedade privada.

Eu quero ser mãe. Não é um sonho, mas um desejo que ainda não se apagou dentro de mim. Pode ser que se apague. Pode ser que inflame. Não tenho pressa. E não tenho medo de mudar de ideia. Meus espinhos desabrocharam em sinal de coragem.

Não nos perguntaram se queríamos borboletas no cabelo ou se ganhar maquiagem no começo da adolescência nos faria feliz. Éramos porcos-espinhos tímidos. Hoje, não mais. Hoje vão ter que nos perguntar se queremos ser mães e aceitar de uma vez por todas que a maternidade não é e nunca foi algo obrigatório e essencial na vida de uma mulher. Só o é se quisermos e desejarmos essa experiência.


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