quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Simone



O centro de Catanduva parece nunca ter mudado. Desde quando posso me lembrar, o trânsito é lento entre a rua Minas Gerais e a Brasil. As pessoas tumultuam o calçadão nos sábados de manhã e na época do Natal. 
O passo dos catanduvenses sempre foi apressado, desde quando consigo me lembrar. Seguimos um fluxo. Seguimos olhando fixamente para o objetivo final. Traçamos a rota antes mesmo de sair de casa.

O centro de Catanduva parece nunca ter mudado, mas muda todos os dias.


Há muito não enfrentava o asfalto quente da cidade natal. Decidi esquecer as chaves do carro e respirar o ar com cheiro de infância. Caminhei olhando as vitrines e percebi, enfim, que o mais do mesmo persiste.

Enquanto tomava o caminho de volta para casa, uma mulher mal vestida e cheia de sacolas fazia o trajeto contrário, em minha direção. As pessoas que dificultavam o encontro do meu olhar com o dela trocaram de calçada. Não queriam dividir o pequeno espaço de ladrilhos tortos com alguém que julgavam ter imagem duvidosa. O caminho ficou livre. Nossos olhos pousaram uns nos outros por alguns minutos. E ela sentiu que as portas estavam abertas para que pudesse falar.

Logo imaginei que ela pediria alguma contribuição em dinheiro. Daria mais uma daquelas desculpas esfarrapadas e arrancaria alguns centavos do meu bolso. Engano meu. A mulher, envergada pelo peso que carregava, perguntou se eu poderia indicar o orelhão mais próximo. Apontei a direção que ela deveria seguir, mas, ainda assim, o olhar da moça permaneceu perdido. Ofereci ajuda. Ela ficou desconfiada e perguntou se eu queria algo em troca. Ri. Ri de desespero por saber que essa mulher talvez nunca tenha conhecido o sentimento genuíno de receber ajuda sem precisar abrir mão do pouco que tinha.

As portas, que estavam abertas, foram escancaradas. Deixei-a entrar por completo. Ouvi uma história antes nunca contada por falta de ouvidos e olhares atentos. A mulher subiu ao palco pela primeira vez. Sentiu os holofotes em direção a ela. Foi protagonista em um mundo que insistia em colocá-la no papel de coadjuvante.

Simone agora tinha nome. Identidade que a tornava única. Simone, aquela que sonhava em ser enfermeira como sua mãe fora um dia, agora tinha sonhos compartilhados. Identidade e sonhos. Não existia outra Simone como aquela no mundo. Ela só precisava saber onde encontrar um advogado. Após a morte de sua mãe, fora despejada da casa que era dela por direito. Caminhava, daquele dia em diante, com seu mundo nas costas. Um mundo ensacado pela falta de conhecimento.

Expliquei onde ela poderia encontrar e dei-lhe um número de telefone. Simone agradeceu e perguntou qual era minha profissão. Disse-lhe que ainda não era nada, pois estava na faculdade. No momento, só estudava. Com olhos de espanto, repreendeu-me. Quisera ela poder dizer que só estudava. Aos seus olhos, estudar era primoroso. Um fazer que lhe parecia tão bonito quanto qualquer outro. Aos seus olhos, disse que, por não ter tido a oportunidade de estudar, sentia-se como uma ovelha no campo, à mercê da natureza e do mundo, que se transforma de forma tão terrível à nossa volta. Os olhos de Simone enxergam melhor que tantos outros com os quais os meus já cruzaram um dia. 

Na despedida, decidi pedir algo em troca. Perguntei-lhe se poderia contar sobre o nosso breve encontro para outras pessoas. Sorrindo, afirmou que seria uma honra.
Ela subiu a rua Minas Gerais, eu desci. Talvez os caminhos sejam opostos a ponto de nunca mais nos encontrarmos. Mas Simone deixou uma marca em mim. Percebi, naquele momento, o quanto estava ansiosa para dividir essa história com o mundo. Tornar Simone uma mulher conhecida, ainda que no imaginário das pessoas. Percebi, enfim, que valia à pena escrever, afinal, somente pela escrita é que Simone poderia ser imortal.  

Simone, provavelmente, nunca verá sua história publicada. Mas ganhou, ao menos uma vez, a chance de uma plateia inteira ao seu dispor. Ainda que plateia de um só.


O centro de Catanduva parece nunca ter mudado. O mais do mesmo ainda tem seu espaço porque nossos olhares insistem em não encontrar os olhos daqueles que caminham na direção contrária. Quando escancaramos as portas, um novo mundo passa a morar dentro de nós. 
Hoje o mundo de Simone ganhou, finalmente, um lar.

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