segunda-feira, 12 de outubro de 2015

As pessoas que matamos ao longo da vida



A secadora girava, fazendo aquele zunido que nos leva para longe. Colocou-se frente à maquina e, hipnotizada pelos movimentos circulares, mergulhou naquele buraco negro. Foi sugada pelo ralo gigante que escoa as águas do pensamento.
Em seu universo, a morte tinha outro significado. As crianças são as únicas  que falam desse assunto com naturalidade. Não são como os adultos, que não sabem o que fazer com a palavra e procuram sempre não dizê-la. O morrer, muitas vezes, não está ligado ao fim da vida. Tudo depende do referencial.


Quando bem pequena, não brincava na rua. Eram as meninas da vizinhança que iam até a minha casa passar as tardes. Dessa época, lembro-me pouco, mas nunca deixei ir embora por completo a imagem do rosto e do nome delas. Foi só ter idade de ir para a escola, mudança radical na rotina, que as perdi. Passamos a nos encontrar somente aos finais de semana, até que, finalmente, morressem nos meus dias.

Logo nos primeiros anos escola, fiz uma grande amiga. Daquelas que a gente gruda e não quer mais soltar. Sente ciúme quando brinca com outras. Dessa época, lembro-me muito. Frequentávamos a casa uma da outra, as famílias criaram laços e aprendemos, logo cedo, o significado de cumplicidade. Quando completamos 10 anos, minha melhor amiga mudou de cidade. Eu até fui visita-la algumas vezes, passei alguns finais de semana com suas novas companhias, mas a gasolina ficou cara. A conta de telefone não agradou nossas mães. A distância aumentou e soltamos as mãos.

Quando entrei na adolescência, conheci pessoas novas. Fiz amizades responsáveis por me ensinar que o mundo não é tão belo e puro quanto parece ser à primeira vista. Tive amores que fizeram meu coração doer e os olhos incharem de tanto chorar. Lembro-me de uma amiga que sempre esteve ali para enxugar as lágrimas causadas por aquelas paixões que fazíamos questão de dedicar as páginas de nossas agendas. Ela consolou, alegrou, acolheu-me e me fez perder, simultaneamente, o medo de filmes de terror e dos sentimentos ruins que poderiam me fazer cair. Sua presença foi fundamental para que eu enfrentasse os anos de escola, mas também nos afastamos. A escola acabou e meu telefone nunca mais tocou.

Já mais crescida, chegou a hora de sair de casa, mudar de cidade e enfrentar a odisseia de morar sozinha. Percebi que os problemas reais estavam chegando com mais força. As paixões já não duravam apenas algumas meses, mas começavam a enraizar. O coração não era tão mais leve. Fui morar em um novo universo, sem imaginar que grande parte das coisas e pessoas que deixara em minha cidade natal estavam datadas para morrer.

O morrer, quando olhamos para trás e encaramos os fantasmas que deixamos ao longo do caminho, ganha outro significado. Quando entrei no apartamento da terceira cidade que me recebeu de braços abertos para morar, vi que, mais uma vez, eu matara pessoas. Morrer é virar apenas lembrança. Privar o outro de sua presença. Partir e cortar os laços.
Perdi as contas de quantos amigos e amores deixei pelo caminho. Não propositalmente, apenas porque a corda que nos prende não é densa o bastante para esticar por todos os cantos que cada um de nós decide seguir. Ela cede. Rasga. Como duas mãos que, apesar de, tentam continuar unidas, mas escorregam. Dedos que se prendem, arroxeiam-se, e se soltam. No final, o destino e as escolham mostram-se maiores e mais fortes que nós mesmos.

É claro que essas pessoas continuam caminhando pelo mundo. Suas vidas não tiveram, de fato, fim. Mas, uma vez transformadas em lembrança, a recusa de fazê-las reais em nossas dias aumenta. Aquela música que ouviam juntos são causará a mesma sensação. O restaurante preferido não terá o mesmo gosto. Aquele mirante, refúgio do caos, não mostrará a mesma vista. Ainda que insistamos em ouvir a música, frequentar o restaurante ou visitar o mirante  com outro amigo ou amor.

A morte é nossa eterna companheira. Está sempre à nossa esquerda, à distância de um braço. Mas nem toda morte é igual, ainda que todas, em determinado tempo, mostrem-se inevitáveis. E, apesar de inevitáveis, continuamos negando sua existência. Colocando-a distante de nós.

Já soltei a mão de muitas pessoas, transformando-as em lembranças e matando-as por inteiro. Talvez por não fazer da morte algo real. Soltei mãos que ainda tinham forças para continuar unidas. Abandonei sem pensar na irreversibilidade dos fatos. Deixei para trás esquecendo que o morrer vai além de túmulos floridos. O morrer é deixar a tesoura cortar o fio da presença. Para alguns, da presença no mundo. Para outros, da presença na vida.


Encarei a morte, cuja presença é eterna no mundo e na vida, e, assim, minhas mãos ficaram fortes. Sabendo da possibilidade das várias formas e possibilidades do morrer, rearranjamos os laços que nos unem. Esticamos as cordas com mais delicadeza. Seguramos com mais firmeza a presença daqueles que importam – amores e amigos. Tornamos menos os fantasmas que habitam nossa estrada.

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