domingo, 8 de maio de 2016

O Dia das Mães que ninguém vê



Neuza* é moradora da Vila Brandina, bairro da região leste de Campinas. É merendeira de escola estadual há mais de uma década e não se imagina em outro cargo, já que não tem tempo para estudar para os concursos públicos da próxima estação. Os sete filhos consumiram sua vida. Todos do mesmo pai, ainda que o pai não se lembre da cara de todos. Partira antes do primeiro choro do último filho. Neuza peitou o destino e, de tanto encher pratos na escola que lhe garantia salário, encheu também as sete cumbucas que se dispunham em uma mesa de quatro lugares. Fez-se mãe e pai em um só corpo.
A filha mais velha engravidou logo. Foi mãe aos 16 e fugiu aos 17. Levou consigo o bebê em fraldas. Talvez tenha realizado o sonho de brincar com a boneca que nunca teve. Culparam Neuza por nunca ter lhe alertado sobre os método contraceptivos. 

Restaram-lhe seis. 

O segundo filho perdeu-se no tráfico. Enxergou uma oportunidade de comprar uma mesa de madeira maciça, na qual coubessem todos os pratos da família sem aperto. Cansara de viver com as asas coladas ao corpo, enquanto dividia um colchão de solteiro com mais dois irmãos. Conseguiu uma grana bacana e puxou o terceiro e o quarto filho pelas mãos. Fizeram uma curta carreira. 
Neuza chegou do turno de oito horas, depois de enfrentar um trânsito de três. Encontrou a casa revirada e na vizinhança não falavam de outro assunto: os três filhos da Neuza foram presos. Algemados. Todos assistiram ao espetáculo, menos Neuza. A merendeira custava a acreditar. Trabalhava para garantir-lhes estudo. Sonhava com a universidade que, de repente, virou prisão. Culparam Neuza pelo descaso com os filhos. Disseram que a mulher passava demasiado tempo fora de casa. O trabalho de Neuza colocou-os naquele camburão. 

Restaram-lhe três. 
O quinto choro que ecoou em seus ouvidos após uma gravidez de risco era de menina. Logo em seguida, o sexto. Gêmeas. Duas meninas idênticas. Olhos claros feito céu de primavera. Costumavam embelezar a casa de cimento batido. Eram as flores naturais que Neuza sonhava em poder colocar no centro da mesa, substituindo aquelas de plástico desbotado. 
Pouco tempo após aprenderem a abotoar o primeiro sutiã, descobriram o mundo da prostituição e das bolsas de grife. Não se contentaram com a vida que Neuza podia lhes dar. O amor não comprava sofisticação. Sumiram no mundo sem dar notícias ou paradeiro. Culparam Neuza. Como é que uma merendeira pode ter sete filhos? Gozar é fácil, engravidar também. O difícil é sustentar. Neuza era cabeça fraca, sussurrava a vizinhança. 

Restou-lhe um. O caçula. 
Pedro tinha 8 anos quando viu a casa esvaziar-se pouco a pouco. A mesa de quatro lugares, antes tomada de irmãos, hoje era espaçosa. Comia com gosto o almoço que Neuza deixava pronto na noite anterior. Era independente e seu maior desejo era ser motorista dos caminhões do Corpo de Bombeiros. 
Com 14 anos, arrumou um bico para ajudar a mãe. Entregava galões d'água em uma bicicleta. Modelo antigo e enferrujada pelo tempo. Escolheu a cor vermelha em uma das idas ao ferro velho. Imaginava-se apagando os incêndios da vizinhança com a água da garupa. 
Certo dia, Pedro tombou. O vermelho que manchou a terra não era tinta descascada do metal enferrujado. Era sangue. O menino fora baleado em um tiroteio irresponsável. Polícia versus traficantes. Não havia bandido e mocinho. Apenas a morte de Pedro. Culparam Neuza. O menino não devia estar na rua para colocar dinheiro dentro de casa. Mãe exploradora. Trepadeira que não segurou o desejo carnal. Parideira que não segurou as pontas e o marido. 

Neuza estava sozinha. 
No velório, o pai de Pedro, que não chegara a conhecer o menino e não sabia ao certo o nome que Neuza havia colocado na certidão, apareceu. Culpou Neuza. Juntou-se à legião de apedrejadores. Ninguém levou flores, só pedras. Uma péssima mãe não merecia condolências. 
Do lado de fora, fez-se uma fila para abraçar o pai e consolar sua dor. Longe do caixão, como sempre estivera do filho, o pai recebeu uma coroa de crisântemos após o sumiço de 14 anos e 123 dias. 
A mãe, segurando as mãos geladas de mais um filho que a vida levara, vestia uma coroa de espinhos. 

Neuza encontrou a primogênita e acolheu seu neto. Visita os filhos na clínica de reabilitação com frequência. Trouxe de volta as gêmeas. Percorreu todo o caminho com as dores causadas pelo ferrão da sociedade. 
Hoje, no "Dia das Mães", não recebeu presente. Os filhos ouviram o conselho da vizinha e foram almoçar com o pai.

*Os nomes foram modificados para preservar a identidade das personagens.

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