domingo, 8 de maio de 2016

Na minha calçada, tem espaço para a flor do outro morar


Segunda-feira é dia de tirar o lixo. Colocar para fora todas as embalagens vazias que empacotaram as doses de aconchego do final de semana. Meu prédio não tem elevador, o que deixou de ser um incômodo e fez das escadas as domadoras da minha ânsia de chegar. Desci carregada de sacos pretos. Seis lances de escadas. Na metade, comecei a escutar a discussão. A vizinha do primeiro andar batia boca com a moradora do segundo. Desacelerei os passos. 
- Isso é um absurdo! Não quero sujeira sua em minha varanda! 

Imaginei que a moça do segundo andar, com preguiça de enfrentar o frio preso nos degraus, pudesse ter despejado os aconchegos de seu próprio final de semana na varanda de baixo. Diretamente. Sem pudor. 
Sentindo o peso dos sacos plásticos em minhas mãos, compreendi a fúria da outra moradora. Nossos restos e resquícios são nossa responsabilidade. 

- Mas são só algumas folhas levadas pelo vento, senhora.
Custei a acreditar. A moça do segundo andar tem um vaso de Antúrios. Vez em quando, coloca suas flores avermelhadas do lado de fora para alegrar os olhos de quem chega. Com o tempo frio e seco, algumas de suas folhas vistosas soltaram-se do caule e voaram livres para qualquer lugar, causando atrito com a vizinha do andar de baixo. 
Pensei no desperdício que é engaiolar o voo de fragmentos de vida verde em sacolas monocromáticas como aquelas que me cortavam os dedos. Continuei o caminho e, chegando ao térreo, lembrei-me de outra história semelhante àquela. 

Um filhote felino precisava, com urgência, ser adotado. Alguém disse que não poderia abrigá-lo porque seus pelos sujariam suas roupas. Sobrava-lhe tempo e espaço. O problema era, mais uma vez, essa tal sujeira que não encontra seu lugar no mundo - não era lixo, quiçá luxo. 
Qualquer aproximação gera resquícios. Convivência deixa rastros. A planta que solta suas folhas, o gato que deixa um manto em cada superfície, o ipê que forra a calçada de casa, o amigo que discorda em uma discussão, o amor que diverge no gosto musical, a família que não segue a mesma ideologia. 
De vassoura e pá a postos, empurramos o que nos incomoda para o interior de qualquer saco preto. Não sabemos lidar com rastros. 

A senhora do primeiro andar sabe que as folhas têm sua beleza. Não são lixo. Não pertencem ao recipiente mal cheiroso do canto da garagem. Mas as folhas são resquícios do outro e, nos dias de hoje, custa-nos a aceitar fragmentos de vida que não nos pertencem. 
Uma folha, uma flor, um pelo, uma ideia, uma opinião, um gosto. Tudo é sujeira quando adentra nosso espaço sem permissão. É lixo quando nos incomoda. 
Dentro do saco preto, misturados às embalagens vazias, rastros e resquícios são encoberto pelo chorume da individualidade nossa de cada dia. Quanto desperdício! 

Na minha calçada, tem espaço para a flor do outro morar.

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