quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Educar é abrir os olhos para o belo

O ventilador da sala de aula abafada girava e Laura o encarava entediada. A voz estridente da professora chegava aos seus ouvidos e reverberava. O pó do giz irritava seu nariz. Todos os sentidos estavam ali, sendo estimulados por aquele ambiente nutrido de palavras, números e formas geométricas. A mente, ao contrário, criava asas e voava para longe, buscando um recanto no qual pudesse se desvencilhar dos testes e da pressão de terminar o exercício complementar antes do sinal.


Laura odiava Matemática. Olhava os números sem interesse, a beleza de aprender a somar e subtrair não a conquistou. Era sempre a última a terminar a lição e perdia parte do intervalo tentando resolver problemas intermináveis, o que colaborava para sua repulsa, afinal, a Matemática era a responsável por privá-la dos bons momentos de descanso entre as aulas. Naquele ano, fez sua primeira recuperação – recuperou a nota e perdeu de vez a vontade de aprender.

Sua mãe questionava os motivos pelos quais a filha tinha dificuldades numa só matéria. Como seria possível brincar com as palavras com tanta maestria e chutar os números de canto, fazendo cara feia sempre que eles lhe saltavam aos olhos? Laura, emburrada, desconversava: matemática não era sua praia.

Certo dia, ao observar os colegas de sala felizes pelos acertos na prova da disciplina detestável, Laura desejou sentir o gosto de ser boa naquilo também. Desejou receber uma prova sem os famosos “x” vermelhos que a perseguiam. Para a menina, aquela nota tão baixa quanto sua altura significava o quão desajeitada ela era com os números. Resolveu, então, conversar com sua professora e pedir ajuda.

A professora, impaciente com o calor que exalava pelos poros e com as vozes que insistiam em martelar em sua cabeça, disse que Matemática era dom – era preciso nascer com ele. Laura arregalou os olhos pré-adolescentes e fechou, definitivamente, a janela para os algarismos. Assustada e com medo das provas que ainda estavam por vir, correu para seu refúgio de palavras, as quais eram abraço quente. Provas de matemática, banho de água fria.
Laura cresceu achando que não havia sido presenteada pelo tal dom, o que, consequentemente, a impediria de ser boa nos cálculos da vida. Fugiu dos números, decidiu seu futuro baseada naquela opinião desatenta da última aula de uma quarta-feira do ensino fundamental.

Cresceu, apaixonou-se pelo ato de ensinar e decidiu destinar seu futuro a compartilhar conhecimento. Numa dessas andanças pelos caminhos da educação, Laura encontrou um aluno que lhe ensinou muitas coisas – dentre elas, as perspectivas do educar.

O aluno, assim como ela, não gostava de Matemática. A aula de Laura era pós-intervalo e, sempre que chegava para começar o ritual, encontrava o mesmo aluno quebrando a cabeça para resolver os mesmos problemas intermináveis que a aborreciam quando jovem.

Após tantos encontros, Laura perguntou o motivo pelo qual, mesmo não gostando da disciplina, o aluno escolhia perder o intervalo para realizar inúmeras tentativas se, ao final delas, os erros seriam maiores que os acertos. O aluno ergueu os olhos da folha marcada pelo lápis e quase rasgada de tanto sentir o peso da borracha e disse:

- Bom, eu insisto em ficar aqui porque minha professora de Matemática diz que não importa o resultado final, mas sim o caminho que escolhemos para chegar até ele. Ela diz que eu posso errar muito agora, mas, com o tempo, os acertos virão.

Laura reparou que os olhos deles não estavam abertos de medo. Os números não eram monstros, mas meros obstáculos que, com a força necessária, seriam colocados no acostamento da estrada, permitindo caminhar tranquilo. E continuou:

- Eu não gosto de perder meu intervalo, mas tô cansado de correr dos números. A minha professora sempre diz que correr dos problemas cansa mais que sentar aqui alguns minutos e tentar ser amigo deles. É isso que estou fazendo. Eu erro sempre e quase nunca tiro notas altas, mas ela disse que isso não importa. O importante é o meu desejo, o valor da nota é consequênci

Correr realmente cansa. E Laura percebeu que os professores correm a todo instante, impedindo seus alunos de encontrem esconderijo tranquilo. Percebeu também que a história do “dom” que lhe contaram era balela. No final, é tudo questão de incentivo.

Sorriu para o menino e virou-se para começar a apagar a lousa repleta de operações matemáticas. Os números que ali estavam eram os mesmo da sua época de estudante, mas, diante daquele menino que apontava o lápis sem parar para dar continuidade às tentativas, constatou a importância do papel do professor para evidenciar a beleza ainda não vista.

 Enquanto sua professora tapou seus olhos, os do menino foram ensinados a ver. A primeira tarefa da educação é ensinar a ver – é através dos olhos que as crianças tomam contato com a beleza mundo. Os olhos têm de ser educados para expandir nosso mundo interior.

  Decidiu, naquele momento, que suas prioridades como educadora seriam modificadas – não mais priorizaria os fatos concretos e os resultados quantitativos, mas estaria preocupada, acima de tudo, em abrir os olhos daqueles que estivem à sua frente, esperando pelo tema da aula do dia.

 Laura compreendeu que o professor não é única e exclusivamente transmissor de conhecimento, mas, especialmente, responsável por apresentar a beleza do mundo aos seus alunos. Incentivando-os a enxergar o universo como um todo, não mais fragmentado por números, palavras ou reações químicas.

  O menino, após muitos erros, encontrou a beleza dos cálculos. Sua visão extrapolou os números que circundam sinais de soma ou divisão e vislumbrou tudo aquilo que eles representavam. Tão belos que o encantaram.

 Laura tornou-se, a partir daquele diálogo que tivera com o aluno, aprendiz – recebeu em sua casa, anos depois, o convite para a formatura do futuro professor de Matemática que seria graduado em alguns meses.


 Incentivado pela professora de Matemática, ele continuou errando, até um dia acertar de vez. 

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