quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A culpa não é sua




Eu carrego o mundo nas costas. Minha coluna já não aguenta tanta pressão. Ontem mesmo, quase surtei e, naquele momento, senti-me culpada por isso. Engoli o choro e repeti o mantra. Logo vai passar.

O começo de um relacionamento é quarto escuro. Esbarramos em uma porta e a fechadura reluzente nos chama atenção. Entramos. Com medo de fazer qualquer movimento brusco, esperamos de mãos estendidas. Mas a curiosidade amolece os músculos rígidos de tensão. Começamos, então, a tatear o ambiente em busca de respostas.
Nesse processo de enxergar com as mãos, tropeçamos na bagunça do outro. Nosso dedinho encontra uma quina qualquer. Hematomas misteriosos surgem de gavetas abertas pelo caminho. E, apesar das dores alucinantes, a imagem formada em nossa mente é sempre algo belo.
Sem vislumbrar o clarão que ilumina a verdadeira face do outro, criamos a paisagem que nosso coração deseja habitar.  Decidimos, de súbito, alugar aquele quarto por tempo indeterminado.


Levamos, pouco a pouco, a bagagem do nosso mundo. Com lanternas falhas, retiramos os lençóis brancos que cobrem o mobiliário. Abrimos espaço para nos acomodar. No segundo dia, a caminho de volta para casa, um florista cruza a faixa de pedestres na direção oposta. Levamos uma rosa, um lírio ou um crisântemo. Os olhos acostumam-se com a escuridão. Enxergam apenas silhuetas. Querem mais.

Um mês qualquer, decidimos trocar a luz. De tanto forçar a vista para completar as lacunas do desconhecido, a cabeça começa a latejar. Uma sensação de incômodo permanente. É hora de conhecer por inteiro aquele espaço.

Dizem que nosso lar não precisa ser, necessariamente, aquele composto de paredes de tijolos, podemos habitar também lares de carne e osso. Há pessoas que são moradas. É o escuro do outro que nos incomoda, por isso desejamos a claridade. Num ato repentino, apertamos o botão do interruptor e ele coloca-se frente a nós totalmente despido das camadas que criamos no passar dos dias.

Eu imaginava aquele lar calmo e tranquilo. Voz mansa. Um mar de paciência. Sob a luz, mostrou-me que há também trechos tempestuosos. Ainda assim, tornei-me onda e deixei-me entranhar no azul, mergulhando leve. Nos primeiros dias, não afundei, mas fundi-me à imensidão - pronta para bater na pedra mais próxima, desfazer-me e  fazer-me nova.

O oxigênio acabou. As pernas já não aguentavam mais nadar contra a corrente. Era hora de encontrar um bote e deixar para trás a tempestade. O que não sabemos é que nem sempre o outro pode salvar nossa vida. O desespero toma conta de nossos sentidos. Em meio às ondas violentas, água salgada permeando os lábios, relembramos o aconchego do quarto escuro. Queremos voltar. O arrependimento de ter desejado acender as luzes toma conta. Até quando conseguiremos aguentar as tempestades do outro?

Custamos a acreditar, mas esse mar violento sempre existiu. Desde o momento em que pisamos, pela primeira vez, no quarto escuro, ele esteve ali. É preciso reconhecer a ambivalência das pessoas.

Quantos relacionamentos deixamos acabar por não aceitar nosso companheiro ou companheira por inteiro? A pergunta pode ser estendida à todas as relações interpessoais. Relacionar-se é conhecer um novo universo. E mais: entender que aquele mundo nem sempre é tão parecido com o seu.

Tenho uma amiga que se apaixona constantemente. Mal tateia o quarto escuro antes de carregar suas malas para dentro dele. Confiança é uma dessas coisas extraordinárias que não necessitam compreensão. Ela tem fobia da luz. Gosta mesmo é das máscaras. Não aquelas de papel e tinta, mas de carne. Diz que só se pode amar verdadeiramente no escuro. Quando os olhos começam a  dar sinais de curiosidade, encerra o contrato e inicia a busca por nova morada. Admiro as pessoas que se recusam a enxergar de verdade.

De fato, não é fácil encarar um clarão escancarado. Dói o globo ocular. Machuca a retina. As manchas luminosas têm poder de confundir. Ninguém gosta de admitir que aquela cortina não tem a estampa inicialmente idealizada. Mas é preciso treinar nossos pontos de vista.

O amor é cego, dizem. Discordo. Cega mesmo é a paixão, que nos impulsiona a abrir aquela fechadura reluzente pela primeira vez. A paixão é dissociativa. Idealiza o que é bom e decora aquele cômodo de acordo com nossas preferências. É egoísta. Esquece de deixar espaço para que o outro imprima a sua marca. Se gosto de lírios, são eles os protagonistas dos vasos. Estávamos ansiosos demais em nos mudar para perceber que, na verdade, o outro gosta mesmo é de rosas.

Paixão é esquizo-paranoide. Fragmenta experiências afetivas. Sabe que há pontos negativos naquele quarto, mas os projeta no apartamento vizinho. Sua morada é só e somente o que há de bom. Mas as vozes do aposento ao lado não param de ecoar. Acender a luz é calar as vozes. Entender que não há vizinhos. Aquelas frustrações fazem parte do mesmo ser.

Chega o dia em que sobrevivemos à tempestade. Em terra firme, é hora de escolher qual caminho seguir. Encerrar o contrato e viver nesse ciclo sem fim de escuridão ou encarar toda a complexidade do convívio. Aceitar a complexidade é esmagar nosso egoísmo. Nem sempre são lírios.

Já assisti ao fim de muitos relacionamentos de amor e amizade. Em todos eles me senti culpada. As pessoas, em um término, costumam listar os aspectos ruins que as levaram a tomar essa atitude. Somos ciumentas, possessivos, indecisas, inseguros. Acreditamos não ser competentes o suficiente para corresponder às expectativas do outro.
A culpa é um peso que achata nossas vértebras, encurvando nossa postura. Rebaixa nossa autoestima. Faz crer não sermos capaz de viver algo bom. Tudo culpa nossa. Quando é que vamos amadurecer? Quando é que vamos mudar?

Estou aqui para dizer: a culpa não é sua. Não permita que um amor ou um amigo saia da sua vida de mãos vazias. Esse peso também é dele ou dela.

Penso que, talvez, não haja, de fato, culpados. A culpa é de quem nos fez acreditar nessa história de personalidade inflexível. Fulano é agressivo, o outro é paz e amor. A mulher é histérica, o homem desligado. Separam-nos em caixas fielmente delimitadas. Como na feira orgânica das quintas-feiras, buscamos tomates, laranjas e cerejas. Eu quero alguém inteligente. Ele quer alguém tranquilo. Pobre de nós, que acreditamos existir indivíduos de uma característica só.

Não é justo culpar o outro por nossas frustrações. Elas são, na verdade, frutos de nossa cegueira. Afinal, nós mesmos nos recusamos a enxergar a mistura heterogênea de sentimentos que faz parte daqueles que idealizamos.

Nosso medo é do claro.


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